São Paulo, domingo, 25 de setembro de 1994
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Depois pode ser nunca

Daqui a uma semana e um dia votam 94 milhões de brasileiros. A pesquisa Datafolha publicada hoje confirma o favoritismo de Fernando Henrique Cardoso que, amparado no real, vai para uma provável vitória já no primeiro turno.
Há certamente entre os eleitores que até agora optaram por FHC muitos que reconhecem no candidato virtudes pessoais, outros que acreditam nos princípios da social-democracia. Mas não há como negar a imensa força mobilizadora do projeto de estabilização.
O próprio candidato reconhece e insiste nesse ponto quase cotidianamente, colocando sua candidatura como garantia de continuidade na luta contra a inflação.
Porém, se ocorrer de fato a vitória no primeiro turno, a lógica se inverte: não será mais o plano a embalar o candidato, mas o futuro presidente obrigado a mostrar como, de fato, a luta continuará. Talvez os três meses iniciais do real tenham sido já a lua-de-mel entre a sociedade e FHC. A partir de outubro tudo vai se passar quase ao contrário de uma eleição comum, em que o vitorioso tem ainda um tempo longo até a posse e, depois desta, um período de graça. A luta pela estabilidade, apesar dos bons resultados iniciais, mal começou e parece improvável que se possa simplesmente comemorar e esperar, entre outubro de 94 e janeiro de 95.
Se eleito no primeiro turno, FHC terá um capital político sem precedentes no país. Collor, sem vencer no primeiro turno, também tinha um capital significativo, afinal investido num plano, secreto, lançado no dia da posse. Agora o plano está na rua e exige desde já do futuro chefe de governo não apenas o endosso a medidas tópicas, mas uma iniciativa imediata e transparente, que confirme a expectativa de que o real será consolidado.
O risco maior é a embriaguez da vitória dilatar as pupilas do vencedor, criando a sensação enganosa de que o futuro, seu e do plano, está magicamente assegurado. É o risco de ignorar o fato político nu e cru de que não há poder que se sustente indefinidamente, sem desgaste, ainda que seja inicialmente enorme. É, em suma, o risco de um plano arrojado e ainda incompleto transformar-se precocemente em nova versão da velha e conhecida política do feijão-com-arroz.
A lua-de-mel terá de converter-se rapidamente em ação, se não se quer no cotidiano pós-eleitoral frustração eleitoreira e politiquice.
Certamente haverá dificuldades em levar o Congresso Nacional a votar reformas, particularmente antes de eleitos todos os governadores e articulada a nova base parlamentar. Mas entre essa constatação óbvia e a inércia há uma enorme distância que, mal preenchida, converte-se rapidamente em vácuo e decepção. Como a política tem horror ao vácuo, a rigor talvez seja justamente nesse período que o futuro presidente disponha de maior prestígio e, portanto, capacidade de superar essas dificuldades.
Algumas iniciativas já oferecem uma perspectiva mais ofensiva. O deputado José Serra trata de levar a votação uma emenda que facilite alterações futuras da Constituição. O assessor especial da Fazenda, Edmar Bacha, lançou o neologismo "desconstitucionalização". Já o ministro da Fazenda, Ciro Gomes, é menos comprometido com a idéia de iniciar antes da posse do novo presidente uma mobilização pela reforma da Constituição.
O candidato que lidera as pesquisas ainda evita o tema. Será certamente assediado, se vitorioso, pela maré montante das negociações para composição do futuro ministério e demais nomeações. Talvez cogite de apresentar-se à comunidade internacional. Pretenderá repousar antes de assumir a Presidência.
Tudo isso é inevitável. Deve-se entretanto fugir da ilusão de que é possível dar tempo ao tempo. A energia e as forças que será necessário mobilizar para dotar o Brasil de uma Constituição compatível com a estabilidade econômica são enormes, numa sociedade que prima pela inércia e pelo jeitinho.
Impõe-se ao presidente da República, principalmente se vitorioso no primeiro turno, logo depois da eleição lançar-se de corpo e alma na mobilização, até agora adiada, por mudanças constitucionais.
Na essência, o dilema é o mesmo que já se viveu em outros planos espetaculares de estabilização: o ajuste radical do Estado e as mudanças enfim da ordem econômica necessárias para viabilizar uma moeda confiável, quando adiadas, não chegam nunca. Pecado maior de muitos que acreditaram, amparados em votos ou planos, que o poder é para sempre.

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