São Paulo, segunda-feira, 26 de setembro de 1994
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A MILHAS DA ILHA

LARISSA PURVINNI; RODRIGO LEITE
DA REPORTAGEM LOCAL

Socialismo ou morte. Diante das duas alternativas propostas por Fidel Castro, muitos jovens cubanos preferem enfrentar os tubarões.
O destino preferido são os Estados Unidos, mas a fuga da Ilha se agravou no último mês (veja quadro ao lado) e acabou alcançando o Brasil.
Yuliet Valdez Blanco, 18, grávida de cinco meses, faz parte de um grupo de seis refugiados que chegou a Santos no último dia 9.
Ela saiu de Cuba no dia 9 de agosto com sete amigos, em uma balsa improvisada.
Iam em direção à ilha Cozumel, no México, e acabaram no Brasil, por acaso.
A travessia teve passagens trágicas. A comida estragou-se no primeiro dia. Depois de cinco dias não havia mais água.
"Meus companheiros comiam peixes crus, mas eu não conseguia." No nono dia, dois foram mortos por tubarões.
Doze navios avistaram o grupo na balsa, mas negaram socorro. Foram resgatados pelo navio liberiano Aniara, que os trouxe ao porto de Santos.
Yuliet diz que sabia dos perigos da travessia, mas que valia a pena tentar. Ela diz que não suportava mais a situação em Cuba.
"Temos que comprar tudo no mercado negro, pagando em dólar. Um dólar custa 130 pesos."
Seu pai, que trabalha como tapeceiro, ganha 250 pesos por mês –cerca de U$ 2,00.
Segundo ela, que se preparava para a universidade, os jovens cubanos sofrem com a falta de perspectivas.
"Você vai para a universidade, ganha um diploma, mas não encontra trabalho."
Outro problema é a falta de diversão. "Minha vida era ruim. Só estudava e voltava para casa. Não temos nada, quem tem são os estrangeiros. Tem que ter dólares para poder entrar."
Ela não diz se os pais sabiam de seus planos. Tem medo de retaliações. Seus colegas de escola não sabiam que ela queria fugir.
"Não podemos confiar nos outros. Se você é meu amigo e eu te conto um problema, você também tem um amigo para quem pode contar e assim por diante."
Voltar para Cuba não faz parte dos seus planos. "O que estão fazendo com o povo cubano é injusto. Se Fidel sair, volto para ver minha família. Se não, não volto nunca mais."
No Brasil
Yuliet e os cinco sobreviventes da aventura estão morando na pensão Scala, no bairro de José Menino, em Santos, enquanto procuram uma casa para morar.
As despesas são pagas pela agência de navegação Williams, responsável pelo Aniara.
Os refugiados também recebem apoio do Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) e do Conselho da Comunidade Negra.
Ainda não podem ir muito longe porque não têm documentos, mas recebem visitas diárias e muitos presentes.
Yuliet ganhou um guarda-roupa completo, além de roupas para Romário– o bebê, que a garota já sabe ser um menino graças ao exame ultrassom.
Por enquanto ela prentende cuidar de sua "produção independente". Depois, procurar emprego e estudar.
O namorado ficou em Cuba. A gravidez foi planejada. Ela avisou o namorado que queria ser mãe e tirou o DIU (Dispositivo Intra-Uterino).
Ninguém achou nada demais. "Em Cuba, se você é maior de idade, pode cuidar de sua vida."
Apesar de ter passado vários dias sem comer, Yuliet e o bêbe estão bem. Ela foi atendida na Casa da Gestante da Prefeitura de Santos e fez os exames de rotina.
Arrependimento
Ao contrário de Yuliet, o professor de pólo aquático Jordan Ernesto del Valle Ramos, 19, no Brasil desde maio, não vê a hora de voltar a Cuba.
Ele mora na mesma pensão em Santos e espera autorização do governo cubano para retornar.
Jordan diz que não planejou a saída. Ele morava em Matanzas, de onde saem muitos imigrantes ilegais.
"Meu amigo me convidou e eu fui. Minha inexperiência me conduziu a sair do país." O rapaz diz que aceitou o convite de ir de canoa até Miami porque queria ver outros países.
"Não saí por ser contra o governo. Cuba tem muitos problemas, mas fugir não é a melhor solução."
Ele diz que a situação da Ilha se agravou muito com o fim da União Soviética. "As coisas eram melhores antes."
A ajuda econômica se foi, mas os russos deixaram suas marcas no dia-a-dia dos cubanos. Jordan conta que todos os eletrodomésticos são russos.
Quando perguntam do que ele mais gostava no país, responde: "Gostava de dirigir o carro do meu pai." Um Lada, de fabricação soviética.
Refúgio
Segundo José Henrique Fischel de Andrade, 25, consultor jurídico do Acnur, vivem no Brasil 2.500 refugiados de 23 países.
A maioria – cerca de mil– vive no Rio de Janeiro. No Estado de São Paulo, moram 550.
Grande parte –70%– vêm de Angola. A guerra civil no país recomeçou em 1992.
Antes, o Brasil recebia também muitos refugiados do Chile, que vivia sob o regime militar do general Augusto Pinochet.
Os 30% restantes vêm de vários outros países africanos e também do Peru, ex-União Soviética e ex-Iugoslávia.
O pedido de refúgio começa com o preenchimento de um formulário e uma entrevista.
O Acnur envia seu parecer ao Ministério das Relações Exteriores, que com o Ministério da Justiça, analisa o pedido.
O refugiado recebe uma ajuda de custo do Acnur de cerca de um salário mínimo, até que receba documentos.
Os documentos são válidos por dois anos e só são renovados se a situação do país que gerou o refúgio não tiver mudado.

Colaborou RODRIGO LEITE, da Reportagem Local.

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