São Paulo, segunda-feira, 26 de setembro de 1994
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Noturno nº 2 da Lagoa

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – A Lagoa, como a Gália no tempo de Júlio César, é dividida em três partes: o acidente topográfico, os acidentes de percurso e os problemas incidentais. Como acidente topográfico é aquilo que os compêndios ensinam: uma porção de água cercada de terra por todos lados. Havia mais água quando os tamoios aqui pescavam em suas pirogas. Hoje, não temos nem tamoios nem pirogas, a bela Sacopenapã tomou o nome do engenho de açúcar que havia lá pelos lados do Jardim Botânico mas ninguém se refere à lagoa pelo nome oficial: é a Lagoa e basta.
Os acidentes de percurso são notáveis: maior rótulo viário do mundo (mais de 60 entradas e saídas em todas as direções e intenções), a Lagoa já foi bairro terminal, fim de linha onde acabava o trabalho e começava o lazer. A Curva do Calombo foi retificada diversas vezes mas sempre apanha o forasteiro deslumbrado que atravessa o túnel.
Os problemas incidentais são muitos e variados. O último começou ontem, com uma das pistas interditadas ao trânsito de carros para melhor desfrute de ciclistas e pedestres. Um pleonasmo urbano, pois já existe pista exclusiva para isso. Mesmo assim, recusei assinar o memorando contra a medida municipal.
De minha varanda vi o desfile –eu próprio participei dele, impossível tirar o carro da garagem, teria de dar uma volta pelo globo terrestre para voltar ao mesmo lugar. Há gente importante que mora aqui, políticos, empresários, artistas. Como não sou nada disso, fico no meu canto. Devo ser o morador mais insignificante do pedaço mas me considero razoável vizinho do morador mais importante: o Cristo Redentor. Geograficamente, ele pertence a vários bairros, pertence a toda a cidade, mas é aqui, na Lagoa, que está sua casa, seu chão de rocha nua, seu leito de mata virgem.
Todas as noites, antes de deitar, dou uma espiada para ver se ele continua lá em cima, com seus braços abertos e iluminados. Da varanda o vejo no alto da montanha e refletido na água, dose dupla de proteção, duas vezes a mesma bênção.

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