São Paulo, terça-feira, 27 de setembro de 1994
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As coisas mandam na história do país

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A s coisas não têm rosto. Elas vão ocupando espaço no país, as coisas vão se parindo e criando a história, e os homens vão correndo atrás para lhes dar um sentido.
Lendo o livro "Chatô", de Fernando Morais (aliás, um grande livro), entendemos uma coisa rara: através da loucura obsessiva de um indivíduo podemos ver um século de coisas se processar. Podemos ver essa dialética entre a pessoa e o rumo da materialidade concreta do mundo. As coisas demandam por existir. Vemos, no livro, que Chateaubriand foi um agente realizador, foi um "cavalo" das coisas.
Hoje, já dá para ver o passado amarelecido dos anos 20 e 30, e até sentimos uma certa "ternura" por aqueles protoconservadores de cartola, aqueles arremedos ainda agropastoris dos nossos vícios de hoje. Vejo no livro como são complementares as coisas e os homens. Esta genialidade de Marx anda esquecida por muitos marxistas. Esqueceram esta cumplicidade entre a produção concreta e o desejo humano e caíram num voluntarismo delirante.
O que espanta na vida de Chateaubriand era esta rara sensibilidade para ver o óbvio da demanda do mundo, este oportunismo histórico para ver que havia uma santidade de botocudos naquela pasmaceira da Velha República e que a realidade estava mesmo a pedir homens que a fizessem se parir.
Vejo-me no futuro (se eu tiver algum) e imagino como contemplaremos o que nos acontece hoje, aqui neste momento tão delicado da vida nacional. Imagino este "hoje" como passado. Seremos, vistos de lá, apenas como um espasmo de desejo, apenas como um bracejar fraquinho dentro de um rio que correu sem se importar conosco, como sentimos em tantas passagens do livro de Fernando Morais? Teremos este sabor de idiotas "de época"? Teremos sido manipulados por pequenos fatos que desencadeiam a marcha das coisas tão represadas?
Como a "petite histoire" foi forte no processo brasileiro! Um tiro em João Pessoa, por causa de uma mulher, foi o estopim para a Revolução de 30!... Como as "coisas" ficam grávidas, prontas para parir, só à espera de alguns malandros que vão lá romper os úteros, tirar os novos bebês do tempo. Chateaubriand foi um dos maiores parteiros do Brasil. Sua sensibilidade de arquipicareta, de transcendental oportunista, fecundava as possibilidades.
É tudo tão extraordinário! Tudo tão menor e ao mesmo tempo tão maior do que os livros solenes que falam em "forças" que determinam nosso destino!... São tão mais fortes os venenosos reloginhos do mal do que as grandes tintas das "relações de produção". Como é incrível ver o divórcio entre os homens de idéias e o mundo das "coisas"! Por exemplo, Prestes é convidado para chefiar a Revolução de 30, se recusa a participar do movimento "burguês" e, anos depois, dá o pretexto para o Estado Novo se instalar, depois do fracasso de 35.
"Flashback"
Olhando meu próprio passado já amarelo, eu vejo que a impressão que ficou de 64 e de 68 é a de que "as coisas" do mercado do mundo precisavam do nosso "não- querer" para poder se parir. A direita internacional precisava que uma esquerda populista cerrasse fileiras pra justificar 64 e nos fazer credores de uma dívida externa bilionária.
Em outras palavras, "Algo", "the Thing", a bolha maldita, precisava que nossos ódios idealistas se deslanchassem numa explosão de slogans ibéricos e abstratos para tomar o poder no país, em 64, para que o fascismo se instalasse, um mercado de supérfluos fosse instalado, um bolo jamais repartido se criasse e que um desenvolvimento torto e escroto se fizesse.
A banca internacional precisava emprestar dinheiro, e 64 foi feito para que nos endividássemos (ou vocês acham que iam emprestar US$ 50 bilhões para o Jango fazer a reforma agrária?). Ou seja, precisaram de nossa ira jovem para esmagá-la e então instalar o desejo da "Coisa" no país. Ou seja, ainda mais: nos aprisionaram para contrairmos a dívida externa e nos libertaram em 84 para pagá-la.
Outra coisa maravilhosa é ver como a recente demanda por "moralidade" na vida nacional coincide com a falta de caixa da banca internacional. Por que não antes? Por que nossa corrupção endêmica, que nos assola há tantos séculos, só ficou visível quando baixaram as águas dos empréstimos externos e o Estado quebrou? Aí pudemos ver as minhocas e os anões que estavam nos roubando debaixo d'água.
Antes, o roubo era invisível e tolerável, porque havia tanta grana sobrando que as migalhas davam para todos. Quando a maré baixou, começou a "demanda" por uma nova "moral". Assim, a moralidade brasileira é uma questão de falta de caixa. A "Coisa", sempre a "Coisa".
Lula
Assim, quando Lula surgiu em 70, havia uma imensa novidade em sua aparição. Lula nascia do ventre alemão da Volks, avesso a ideologismos abstratos. Era novo. Digo mais: não teria havido anos mais tarde a idéia do PSDB, sem o corte epistemológico que Lula criou em nossa esquerda, a práxis vitalizadora regendo os devaneios políticos. Lula teve esta enorme importância.
O PT poderia ter evoluído para uma social democracia radical, mais radical que a dos tucanos. Mas não tardou que os intelectuais, maravilhados com a beleza espontânea dos metalúrgicos, aportassem como náufragos das utopias. E, de novo, o "novo" foi esquecido; de novo, a realidade virou sonho e teoria. Como foi impressionante o sucesso de Chateaubriand perto da córnea estupidez de um Arthur Bernardes, por exemplo, ou do rosário de heróicas derrotas de Prestes. É duro reconhecer que os teóricos da direita estavam mais perto da realidade que os românticos da esquerda.
Atenção, patrulhas, não estou louvando a direita; apenas digo que sempre houve um divórcio entre os que buscavam uma harmonia no mundo, uma "salvação" brasileira, e aqueles que iam fazendo o progresso, mesmo a contrapelo do bem, a contrapelo da justiça, como foi o caso de Chateaubriand, como foi o caso da Globo (que eu citei outro dia e quase me mataram). Quem veio antes? A ditadura precisava da Globo ou o desejo tecnológico e "concentracionário" do capital internacional precisava da ditadura, para se parir em Globo?
O bem não basta
O que sempre me chocou na minha humilde vida foi ver a grandeza dos "fins" da esquerda, comparada com seus pífios "meios" para atingi-los. Janine Ribeiro fez um brilhante artigo sobre isso. A esquerda sempre foi genial nos diagnósticos da doença. Mas péssima em receitas para curá-la. Eu via os membros do partidão fazendo brilhantes análises da estrutura e cegos para a conjuntura. Na hora do "que fazer?" era um deus- nos-acuda. Nenhuma solução prática.
O adjetivo bastava, bastava a ira santa, bastava a voluntarista sensação de santidade de quem é a favor da justiça. O bem não basta; é preciso poder para exercê-lo. Hoje vemos isso no PT. Os mesmos erros de 63 e 67 estão comendo o PT por dentro. Na hora de modernizar o país, na época da revisão constitucional, preferiram atravancar a mudança para competir no atraso. O PT poderia ter ajudado a elevar o nível da luta, ter apoiado o Plano Real e hoje lutar pelo poder em um mais alto patamar.
Hoje, a esquerda não pode se dar ao luxo de só lidar com palavras. Acabou a esquerda adjetiva. As "Coisas" têm de ser enfrentadas. A esquerda brasileira não pode considerar o capitalismo apenas um palavrão, um ente adjetivo.
Como foi mimada por um getulismo que lhe serviu de "interface" durante anos, criando uma espécie de corporativismo "gaté", a esquerda ficou sem a prática de luta direta. Lula, que surgira como esta grande novidade, também foi engolfado pelos "ideológicos". A modernidade da esquerda passa pelo reconhecimento das tendências do mundo e pela tentativa de dirigi-los pragmaticamente para o mundo da justiça e da distribuição de renda. O verdadeiro materialismo histórico é este e não a retórica voluntarista que fala contra a miséria, mas não tem soluções práticas para acabar com ela. Precisamos de uma luta de classes "de mercado".

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