São Paulo, terça-feira, 27 de setembro de 1994
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A vida acima de tudo

LUIZA ERUNDINA DE SOUZA

A imagem social das pessoas que vivem nas ruas é ancorada em muitos preconceitos. Em geral, são identificadas com a delinquência, marginalidade e violência, e não como seres humanos subtraídos de sua condição de cidadãos. Pesquisa realizada em meu governo revelou o verdadeiro perfil dos que foram obrigados a ficar na rua.
Metade era nascida no Sudeste. O Nordeste dividia a outra metade com as demais regiões do país. Só 13% eram analfabetos. A maioria cursou o 1º grau. Era uma população jovem: 70% abaixo de 40 anos. A maioria já teve carteira assinada e desenvolvia alguma atividade remunerada: carregar caminhão, catar papel e vidro para reciclagem.
Havia também os psicologicamente atingidos, os fisicamente enfermos e a infância abandonada.
Há o morador de rua e o circunstancialmente na rua. Cada caso merece compreensão distinta. Há muitas formas de ser atingido pela miséria.
Como não se leva em conta quem eles são, imagens defeituosas e negativas são construídas e se cria a lei antimendigo, à semelhança do que fez Carlos Lacerda no Rio de Janeiro. O clima criado pela Prefeitura de São Paulo, recolhendo lixo, entulho e gente, é a mesma operação. Um sinal preocupante ocorrido foi o do menino Ricardo da Silva Soares, de 12 anos, atropelado e morto por um caminhão da prefeitura.
A situação dos que vivem nas ruas é desoladora e fere a sensibilidade até dos mais insensíveis. Mas precisa ser enfrentada e não escondida. Não adianta cercar, arborizar e policiar os locais onde essas pessoas se fixam. Não é assim que o trágico fenômeno desaparecerá.
Essa população é parte da cidade e precisa de políticas consistentes que ampliem suas possibilidades de convivência e socialização e seu acesso a bens e serviços públicos.
No atual governo da cidade, as políticas públicas ligadas aos serviços sociais foram destruídas, minimizadas ou deformadas. A população, por causa da CPI do Orçamento, sabe o que significa prioridade de governo. É capaz de diferenciar obras que não servem ao conjunto da sociedade daquelas que realmente atendem às suas necessidades básicas.
Estava claro para mim, ao governar São Paulo, que a pobreza e o aumento crescente da população moradora de rua não eram uma questão conjuntural, nem que pudesse ser resolvida por inteiro pela gestão da cidade. O fenômeno é crescente e está presente no cenário de quase todas as cidades do mundo.
No caso brasileiro, adultos e crianças sem trabalho, sem casa ou pertencentes a famílias em processo de desagregação utilizam a rua como espaço de sobrevivência. Essa é a face cruel da exclusão de grandes contingentes de trabalhadores do mercado de trabalho e da insuficiência e má qualidade das políticas públicas. É, também, subproduto da pior distribuição de renda do mundo.
Implantar políticas sociais criativas e inovadoras, radicalmente diferentes da matriz conservadora, foi um dos grandes desafios de nossa administração. Foram consideráveis os avanços obtidos nas áreas de saúde, educação, cultura, habitação e transporte coletivo.
Na área da assistência social, foi expressivo o esforço de construir uma política de resgate da cidadania, sem tutela e favor. Dentre as iniciativas, destacou-se a ação junto aos moradores de rua, especificamente na instalação de sete casas de convivência como programa aberto e experimental de combate à prática de confinamento e estímulo à convivência social e à recuperação da auto-estima de seus participantes.
O investimento de nossa administração em políticas sociais (50% do orçamento municipal) teve significado na melhoria da qualidade de vida de seus usuários. Significou, fundamentalmente, investir no campo da ética, da solidariedade e da dignidade humana.
Essa responsabilidade não é apenas do Poder Executivo. Um Poder Legislativo voltado para os mesmos valores interfere e fiscaliza medidas arbitrárias e irresponsáveis do Executivo. O parlamentar a ser eleito deverá propor medidas que favoreçam as reformas políticas, econômicas e sociais.
Para isto, é fundamental garantir o controle das despesas públicas, para que se destinem às parcelas da população que mais necessitam da assistência governamental. Isto se fará através de competente controle e acompanhamento da execução orçamentária, denunciando prontamente à sociedade os desvios e desmandos no uso do dinheiro público.
Além disso, é fundamental conquistar um novo sistema tributário que tenha como pressuposto básico a justiça fiscal, a simplificação dos impostos e o fortalecimento dos municípios.
É urgente para o Brasil assumir e tratar sua crise social, resgatar os seus excluídos e construir políticas sólidas de geração de empregos e promoção da cidadania. É urgente para o Brasil assumir a si mesmo. E escapar do perigo de anestesiar-se frente a sua miséria, como está a propor, com seus caminhões de limpeza, a Prefeitura de São Paulo.

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