São Paulo, quinta-feira, 29 de setembro de 1994
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Educar para empregar

ANTONIO KANDIR

Nos anos 80, o excepcional desempenho exportador dos países do Sudeste Asiático pregaram uma desagradável surpresa nos Estados Unidos e em países da Europa Ocidental.
Com o avanço dos Tigres, os membros ocidentais do G-7 começaram a perder competitividade no mercado de manufaturas com maior conteúdo tecnológico.
Logo percebeu-se que, dentre as causas dessa perda de competitividade estavam deficiências nos sistemas educacionais, que, em particular nos Estados Unidos, não vinham respondendo adequadamente às necessidades geradas pela chamada "revolução tecnológica".
Frente ao desafio, num contexto de liberalização do comércio internacional, desencadeou-se nos países ameaçados intenso debate acerca de mudanças que permitissem adequar os respectivos sistemas educacionais às novas formas de produção e às crescentes exigências que essas estabelecem quanto às habilidades cognitivas da mão-de-obra, de modo a interromper a tendência de perda de competitividade que se afigurava dramática no longo prazo.
Não é outro, em essência, o desafio que esta posto para o Brasil às vésperas do século 21. Só que para nós o desafio é infinitamente maior. Carregamos o peso não só de erros recentes, mas de equívocos seculares.
Temos um sistema educacional que fica a dever mesmo em comparação com os de países de economia menos complexa e dinâmica do que a nossa. Prova disso é que a imensa maioria dos trabalhadores brasileiros sequer completou o primário.
Não é ocasional que seja assim. A existência de uma massa imensa de trabalhadores pouco qualificados, contrastando com parcela pequena de trabalhadores qualificados e ínfima de trabalhores adequadamente escolarizados, é produto do tipo de industrialização que o Brasil teve e de opções políticas que se fizeram ao longo desse processo.
Enquanto não se esgotou o dinamismo do modelo de industrialização assentado na produção em massa, a custos baixos de mão-de-obra, com uso abudante de recursos naturais e processos produtivos rigidamente automáticos, a universalização do acesso a um ensino fundamental de qualidade, condição básica para a progressão para níveis superiores de escolaridade, simplesmente não constituiu preocupação de nossas elites econômicas e políticas, com honrosas exceções pessoais.
Assim foi porque a acumulação do capital prescindia de amplos contingentes de mão-de-obra adequadamente educada e porque a extensão de um ensino fundamental de boa qualidade não constava do ideário político da elite.
O desenvolvimento econômico prescindia de escolarização adequada. Mas não mais agora. Com a introdução crescente e acelerada de tecnologias de base microeletrônica revolucionando os processos produtivos em escala global, subverteram-se os termos anteriores da competição capitalista.
A competitividade das empresas passou a depender do acesso a trabalhadores que tenham habilidades cognitivas que lhes permitam resolver problemas, reprogramar máquinas, ajustar processos e, mais importante de tudo, produzir, no chão da fábrica, inovações, que são a chave para ganhos de qualidade e produtividade.
Essas habilidades adquirem-se com escolaridade adequada, de preferência na idade certa. Exigem conhecimentos básicos de matemática, linguagem que não se adquirem em cursos profissionalizantes ministrados dentro ou fora da fábrica.
Estamos pagando agora as promissórias da miopia de nossas elites, promissórias seculares e promissórias recentes, dentre as quais as do regime autoritário.
Este, embora tenha aumentado a cobertura escolar no Brasil (o número de matrículas no ensino básico elevou-se de 8.368 milhões em 1960 para 22.598 milhões em 1980), não apenas não construiu um ensino básico de qualidade, como destruiu núcleos de qualidade que havia no ensino médio, resultado de sua opção equivocada pelo ensino profissionalizante.
Parte da elite já se deu conta dos equívocos do passado e tem tomado iniciativas concretas no sentido de suprir as deficiências de nosso sistema educacional. Em várias empresas, o investimento na educação suplementar dos trabalhadores passou a ter peso importante, em alguns casos a ser considerado de caráter estratégico.
Em geral, são empresas que competem em mercados externos dinâmicos (Europa, Estados Unidos etc) e se deram conta da impossibilidade de preservar e ganhar fatias nesses mercados sem atender às crescentes exigências de qualidade. E qualidade não se consegue sem mão-de-obra educada.
A experiência dessas empresas aponta, em escala micro, o desafio maior do país: mudar radicalmente o quadro educacional do país para permitir uma integração crescente nos mercados externos mais dinâmicos, sem o que haverá, a médio e longo prazos, consequências desastrosas para a qualidade de vida dos brasileiros, com redução do emprego, queda do salário real, degradação acelerada da qualidade de vida e demais fenômenos que caracterizam processos de involução econômica.
Para mudar o quadro educacional, iniciativas de empresas são importantes, mas claramente insuficientes. Trata-se de uma questão de escala e abrangência, agravada pelo fato de que hoje a produção capitalista avançada requer menos mão-de-obra e cria "barreiras à entrada", isto é, tende a não incorporar trabalhadores com níveis baixos de escolaridade.
Portanto, sem ações de maior amplitude, sem uma política de caráter nacional, haverá, na melhor das hipóteses, uma cisão cada vez maior entre o "Brasil moderno" e o Brasil dos excluídos, em prejuízo da competitividade global do país, da melhoria abrangente da qualidade de vida e da integração social.
A educação é o elo fundamental entre a modernização econômica e as mudanças sociais necessárias à superação sustentada da pobreza e à democratização da cidadania. É nessa perspectiva que ela surge na sua exata dimensão de maior desafio do país na passagem para o próximo século.
Não falta conhecimento a respeito do problema e das soluções possíveis, acumulado por educadores, gestores de estabelecimentos públicos e privados, cientistas de várias áreas.
Tem-nos faltado até aqui condições políticas, em particular no âmbito federal, para dar eficácia prática a esse conhecimento disperso em várias instituições do Estado e da sociedade.
A perspectiva cada vez mais firme de eleição de Fernando Henrique e de governadores de Estado como Mário Covas, com correta visão acerca do problema e capacidade para conduzir a superação do desafio, cria condições favoráveis a uma mudança de grande envergadura na educação brasileira.
Será um longo e difícil processo, cujo sucesso dependerá do concurso de todas as forças reformistas modernas, independentemente de filiação ou preferência partidária. Ou nos mostramos à altura desse desafio ou talvez venhamos, um dia, a nos perguntar de que valeu a vitória eleitoral.

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