São Paulo, sexta-feira, 30 de setembro de 1994
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Projeto instiga reflexão sobre fluxos urbanos

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

H á alguns meses, foi organizada uma exposição de arte no edifício do antigo Matadouro Municipal da Vila Mariana. "A Cidade sem Janelas" reunia trabalhos de Marco Giannotti, Artur Omar, José Resende, entre outros.
A coisa era impressionante. O lugar da mostra já era por si mesmo trágico, morto, fechado. A sensação que se tinha era a de uma cidade opressiva, sem ar, que barrava qualquer perspectiva da mudança, que se deteriorava, que envelhecia.
Assistimos atualmente ao segundo capítulo, por assim dizer, do projeto Arte Cidade, idealizado pela Secretaria de Estado da Cultura, sob a curadoria de Nelson Brissac Peixoto.
Em vez do matadouro e da idéia da "Cidade sem Janelas", temos uma exposição que ocupa três edifícios do centro, com o título de "A Cidade e Seus Fluxos".
Estendi-me, no artigo de anteontem, em comentários a respeito do gigantesco periscópio que Guto Lacaz construiu no edifício da Eletropaulo.
Tento falar um pouco dos aspectos mais gerais da exposição. "A Cidade e Seus Fluxos" é ao mesmo tempo uma mostra mais interessante e menos interessante que a do matadouro.
Trata-se, certamente, de uma mostra mais difícil. Em "A Cidade Sem Janelas", o próprio ambiente em que a exposição foi montada servia para preparar o espírito do visitante. O clima de mistério, de insólito, de inquietante, surgia com rapidez.
Em "A Cidade e Seus Fluxos", predominam o humor e a mobilidade. O visitante é forçado a um passeio pelo centro, já que há três prédios diferentes para conhecer. A idéia é interessante: trata-se de enfatizar não mais a decadência "paleotécnica" das cidades fuliginosas e soturnas de antigamente e sim a fluidez tecnológica, a "inabarcabilidade", o fugidio que há na experiência urbana contemporânea.
Ou seja: na primeira exposição tratava-se de uma cidade sem janelas, opressiva como um cárcere. Agora, é como se houvesse "janelas" demais; tudo é fluxo e passagem, intercâmbio rápido, velocidade, dissolução do próprio conteúdo da experiência. Sequer existe um lugar único onde a exposição é feita. Você transita de um lugar par outro.
Deu certo? Em alguns casos, em algumas obras, sim. Em outros, não. E o visitante acaba sendo obrigado a analisar cada obra individualmente, pesando suas preferências individuais, ao contrário do que ocorria no matadouro, onde o conjunto, o ambiente, o espaço impunham uma marca mais nítida.
Três realizações, a meu ver, responderam com inteligência e criatividade ao tema da mostra. Tadeu Jungle inventou modos de usar os elevadores de cada prédio. No prédio da Light, ele construiu um "elevador-táxi", obra pop, divertidíssima, com estofamentos kitsch, pisca-piscas, calotas. No edifício do Banco do Brasil, na rua da Quitanda, vemos o oposto: um elevador minúsculo, todo escuro, com fundo musical gravíssimo, e outro elevador, ofuscante de brancura, de espelhos, de luz, emitindo sons agudos.
O que será que isso "quer dizer"? Em primeiro lugar, passamos a entender o elevador como um meio de transporte; não mais neutro e asséptico, mas dotado de personalidade. Por outro lado, o mais importante, trata-se de enfatizar a instantaneidade, a rapidez da experiência –uns poucos andares, uma obra de arte, menos de um minuto, eis tudo. Tadeu Jungle oferece uma vertigem feliz.
Regina Silveira usou as janelas do prédio da Eletropaulo para projetar, no chão, sombras virtuais. O efeito teria sido maior se tivessem usado um andar inteiro do edifício exclusivamente para o trabalho dela. Mesmo assim, a coisa é de grande beleza visual. O que, em tempos tão "conceituais", tão avessos à organização sensível da forma, ao gosto, ao "bonito", já merece que se tire o chapéu.
O que será que ela "quis dizer"? A pergunta não se coloca tão claramente, pois a obra, para lembrar o poeta William Carlos Williams, não quer "significar", apenas "ser". Perseguido pelo espectro do "conteúdo" e do "sentido", arrisco entretanto uma interpretação.
Pode ser uma casualidade. Mas a mostra anterior se chamava "A Cidade Sem Janelas". E janelas, janelas de sombra, é o que Regina Silveira pintou no chão. Seu propósito era o de causar uma ilusão de ótica, o espectador terminaria vendo, no piso do quinto andar, a fachada invertida dos outros andares do prédio. É como se a obra estivesse dizendo: não, a cidade tem janelas, a cidade é coisa aberta, mas essas janelas, esses "fluxos" e aberturas, são ilusão. Regina Silveira, como Guto Lacaz com seu periscópio, nos propõe uma rápida utopia.
Anna Muylaert trata muito bem da fugacidade. Foi mais longe que ninguém, ao fazer um trabalho que sequer conhece lugar fixo. Seu tema é o suicídio de um bancário, que se atirou do viaduto do Chá. Muito bem. Acontece que ela espalhou indícios desse fato por toda a mostra. Um confessionário, no prédio da Eletropaulo, nos mostra um vídeo do suicida se justificando; um CD-ROM à disposição do visitante mostra, com humor maligno, diferentes aspectos do suicídio.
Em matéria de fluxo e de passagem, chegamos com este trabalho a extremos de crispação irônica, de malícia trágica. Alguém se atira do viaduto. Como "fluxo urbano", eis aí um exemplo e tanto.
Muitos outros trabalhos dessa mostra mereceriam comentário. Minha tendência, contudo, é ver o quanto padecem de um "instantaneísmo" vanguardista, de uma pseudo-ironia que termina sendo apenas falta de graça.
O resultado de toda essa mostra me parece mais desigual do que o que vi no matadouro. É que o próprio tema –fluxos da cidade– é mais difícil de tratar do que a circunscrição soturna, o abafamento, a escuridão vivida pelo visitante de "A Cidade Sem Janelas".
Em todo caso, saí dessa experiência cultural mais contente, mais pensativo, mais estimulado. É muito bom ver coisas assim em São Paulo. E ver o povão –pois tudo é de graça– participando da coisa. Não quero fazer puxa-saquismo, mas a Secretaria de Estado da Cultura, Ricardo Ohtake e Nelson Brissac estão de parabéns.

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