São Paulo, terça-feira, 3 de janeiro de 1995
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Itamar, Itamar

JÂNIO DE FREITAS

JANIO DE FREITAS

É incerto que o Itamar Franco exultante e de mãos dadas com Fernando Henrique Cardoso, na transmissão do cargo, seja o verdadeiro Itamar Franco. Além da biografia política do verdadeiro, a alegria aparente do Itamar que ali estava depunha contra a sua autenticidade. A dúvida, na verdade, não é tanto sobre a identidade do Itamar Franco presente à solenidade, mas sobre o destino dado ao outro. Ou que ele se deu.
Da última vez em que o verdadeiro Itamar Franco se mostrou, estava aturdido com a reação geral à nomeação de Eliseu Resende para o Ministério da Fazenda. Até ali, sofrera, resistindo com a firmeza das suas convicções, ao assédio mais cruel e antiético dos meios de comunicação desde Getúlio. Ainda insatisfeitos com a própria virulência, alguns jornalistas trouxeram de volta à imprensa insultos pessoais dela desaparecidos desde que Lacerda os transferiu da sua "Tribuna" para a tribuna da Câmara. Nem Collor tivera sua saúde mental posta em dúvida, e com palavras tão desqualificantes.
Fora de São Paulo, muita gente supôs que a ofensiva contra Itamar fosse por sua condição de mineiro sem intimidade com a classe dominante. Opinião certa vez adotada aqui, agora a retifico: já era a tendência fascistóide no neoliberalismo, para o qual a recusa de apoio à privatização baratinha de tudo o que tenha algum valor no Estado, à orgia dos preços, ao assalto dos cofres públicos pela ciranda financeira, é, sem possibilidade mais sutil, "atraso", "ignorância", "burrice" –para lembrar só definições intelectuais feitas pelo hoje presidente da República.
Itamar Franco resistia, enquanto alguns de seus amigos, encabeçados por José de Castro Ferreira, disseminavam na imprensa intrigas contra o então ministro Paulo Haddad, posto sob a suspeição palaciana de trair as metas do seu presidente: recuperação progressiva das perdas salariais, privatizações partindo do que fosse oneroso para o Estado e com valores honestos, freio na orgia dos preços e nos ganhos também orgíacos da ciranda financeira, plano antiinflação sem recorrer ao castigo dos salários.
Derrubado Haddad, José de Castro Ferreira já consolidara a idéia inacreditável da nomeação de Eliseu Resende. Ministro por 15 dias. Nos últimos destes dias, Fernando Henrique passava o tempo nos Estados Unidos, à espera do telefonema de Itamar comunicando que afinal se desfizera de Eliseu e que o então ministro do Exterior já podia voltar ministro da Fazenda, como previamente combinado.
Fernando Henrique não recebeu a Fazenda. Recebeu o governo. Fez tudo, e muito mais, o que Haddad era suspeito de desejar sem fazer. E fez-se presidente, não mais apenas de fato, porém também de direito. E Itamar Franco e suas velhas e honradas convicções, onde estiveram durante aquele ano e meio? Até hoje não se sabe.
O Itamar que apareceu de mãos dadas com Fernando Henrique foi o que viu, passivamente, a inflação subir de 26% a 43% ao mês sem exigir a menor providência. E sabendo muito bem do aperto crescente nos salários e vencimentos. Foi o que sabia ser verdadeira a informação pública de Winston Fritsch, segundo a qual levava ao exame do FMI o novo plano econômico (pronto desde que André Lara Resende deixou o governo em princípio de novembro de 93). Foi o Itamar que permitiu, passivamente, o engavetamento do plano por meio ano, para adequar seu lançamento à cronologia eleitoral de Fernando Henrique –enquanto os pesados custos sociais desta espera mais enriqueciam os enriquecidos e mais miséria distribuíam.
Lê-se, com frequência, que Itamar Franco fez o seu sucessor. É uma idéia difícil de entender, inconciliável com o fato de que fazer o sucessor é entregar o poder a quem dê prosseguimento às suas metas. Nada mais distante das metas defendidas por Itamar Franco ao longo de sua vida, como da primeira metade do seu governo, do que as do seu sucessor. Bem, estou me referindo ao verdadeiro Itamar Franco. O de destino ignorado. Talvez até seja o que estava exultante na rampa. Mas isto seria muito decepcionante, para as pessoas que acham a coerência e a coragem de mantê-la, por mais que custe, indispensáveis.

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