São Paulo, quarta-feira, 4 de janeiro de 1995
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FHC confunde AI-5 com Plano Cruzado

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Erramos: 05/01/95
A foto desta reportagem, mostra o presidente Fernando Henrique Cardoso durante a posse no Congresso Nacional, e não em "culto ecumênico" como saiu.
Faço uma análise do discurso de posse do FHC. Assistindo à cerimônia pela TV, minha primeira impressão é a de que foi um pronunciamento pouco empolgante. "Serenidade e firmeza", como diz Fernando Henrique, são mais de seu estilo do que quaisquer conclamações bombásticas.
Uma única frase de tom belicoso ganhou aplauso da platéia e destaque nos meios de comunicação: "Se for preciso acabar com os privilégios de poucos para fazer à imensa maioria dos brasileiros, que ninguém duvide que eu estarei ao lado da maioria".
Mesmo assim, apesar dos destaques e dos aplausos, atenção: a frase está no condicional. "Se for preciso..." O que significa acreditar também na alternativa oposta: "Talvez não seja preciso..."
Vindo de um sociólogo de esquerda, o tom hipotético da frase merece ser recebido com ironia. A oposição de interesses entre "minoria" e "maioria" é um fato, não uma conjectura –e nem precisamos ser marxistas para admitir isso como um dado da realidade.
Mas no discurso não era o sociólogo, e sim o político quem tomava a palavra.
Não o recrimino por este sutil e rápido volteio de gramática; passando do indicativo ao condicional, do concreto ao hipotético, FHC prova, uma vez mais, como conseguiu ser eleito presidente da República.
O seu discurso foi inteligente e realista na medida do possível. É resultado de um problema ao mesmo tempo retórico e político. Os dois se confundem, aliás.
Problema retórico: cada discurso de posse está obrigado, tipicamente, a anunciar transformações e mudanças. É uma imposição do gênero literário. Tem de querer "reformas profundas", de prometer "novos tempos". Não fosse assim, não seria discurso de posse, canto vitorioso de galo de manhã.
A eleição de FHC se deu, contudo, num quadro que não era de ruptura, mas de continuidade. Fernando Henrique foi ministro de Itamar. Mais do que isso: cassado, perseguido pelo regime de 64, FHC tem como vice Marco Maciel e tem o apoio de Antonio Carlos Magalhães.
Todo o seu discurso de posse se movimenta, assim, num campo delicado do ponto de vista político, e numa quase impossibilidade do ponto de vista retórico. Trata-se de figurar uma idéia de "ruptura", ou pelo menos de "renovação", que não ofenda as Forças Armadas, o PFL, o governo de Washington, o sr. Mario Amato e congêneres.
Um problema que, tanto do ponto de vista oratório quanto do ponto de vista político, FHC resolveu com habilidade.
Começou falando de sua juventude política. Das esperanças esquerdistas nos anos 50. Referiu-se, depois, aos "anos sombrios" do regime militar. Ou seja, reafirmou seu passado esquerdista, de exilado, de perseguido. O espectador crítico respira aliviado. Olha aí, o Fernando não se renegou completamente.
Sua vitória nas eleições quase que poderia passar, assim, como uma espécie de vingança face ao pós-64. Mas FHC sabe que, apoiado por ACM e por Sarney, as coisas não foram tão simples, tão bonitas e tão puras assim.
Recorre a duas estratégias muito hábeis. A primeira é a seguinte. Depois de pisar nos calos dos militares, evocando um passado "sombrio", FHC lhes promete "novos encargos além dos já estabelecidos" –acenando com um Ministério da Defesa que não seja uma redução humilhante de poder, mas uma espécie de nobilitação civil.
Tudo bem –aparentemente– com os militares, sem nenhum recuo face à avaliação do regime de 64. Nesse ponto, o discurso de FHC é nota dez.
A segunda estratégia do discurso de FHC é mais complicada. Trata-se sempre, como vimos, de confundir a ruptura com o passado e a continuidade com o passado. Tento resumir as sutilezas do pronunciamento.
Criticando o regime militar, FHC disse, com razão, que a liberdade dos cidadãos foi sacrificada. Surge assim, ele que foi cassado e perseguido, como autêntico, como fiel a suas raízes e convicções.
Mas durante o discurso o termo "liberdade" sofre uma sutilíssima alteração. Passa imperceptivelmente daquilo que se refere a direitos políticos para o campo dos direitos econômicos. FHC elogia o Plano Real por não ter ferido a liberdade dos contratos privados: "Sem ceder um milímetro de nossa liberdade, sem quebrar contratos nem lesar direitos, acabamos com a superinflação".
Num parágrafo adiante, resume tudo –a luta contra o autoritarismo e o fim dos pacotes econômicos– numa única frase: "Temos de volta a liberdade, portanto". Que liberdade? FHC confunde 68 com 86, o AI-5 com o Plano Cruzado. Completa, num tom novamente "esquerdista": "Falta a justiça social".
Prestidigitação sutil do termo "liberdade", tentativa claramente política de associar liberalismo econômico a democratização, expediente óbvio no sentido de ligar o velho FHC ao "novo" presidente da República, o discurso joga numa perspectiva de aliança: empresários e ex-esquerdistas, PFL e PSDB, Sarney e Weffort, Cebrap e ACM.
O difícil é ser "mobilizatório" e empolgante nesses termos. Acenar com rupturas, imaginárias ou não, que tenham convergência com os rumos do capitalismo internacional.
Mas é claro que FHC, com todos os seus compromissos, está obrigado a acenar com "rupturas". Sua "ruptura", a dele e a de José Serra e Malan, é precisamente a de apostar num discurso "racional", equilibrado, esperançoso, de consenso.
Será que isso basta? O próprio FHC parece achar que não. Conclama a imprensa e os meios de comunicação de massa a uma cruzada construtiva, pedagógica, mobilizatória.
Delega à mídia a belicosidade que ele próprio não está em condições de exercer. Confia numa cobertura isenta dos fatos, criticando a atenção exagerada dos meios de comunicação "pelo folclore dos fatos diversos da vida cotidiana".
Tubo bem. Mas com a festa "black tie" para milhares de convidados depois da posse, seria difícil que o folclore dos modelitos e dos atores globais, dos bufês e caviares não assumisse o primeiro plano, nesta passagem do poder tão mundana, tão elegante e indolor.

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