São Paulo, sexta-feira, 6 de janeiro de 1995
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Ator faz via-crúcis para chegar ao papel

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Primeiro foram os oito evangélicos que invadiram o camarim de Eduardo Moreira, durante a temporada no Rio de Janeiro, para cair a seus pés "de felicidade e contentamento" e depois encenar, eles próprios, como passaram a acreditar em Deus. Gabriel Villela recorda: "Esta história é uma loucura. Eles dramatizaram como é que Jesus falou com eles. Na visão deles, era, 'você encontrou Jesus Cristo, agora olha como nós encontramos'."
Depois foram "as freirinhas", que choravam durante a apresentação e reclamavam das pessoas que, nos momentos engraçados, se deixavam rir. Depois foram "as senhoras" que se aproximavam da boca de cena e começavam a rezar, diante do palco, das imagens, para irritação dos "amarelinhos do teatro", que queriam expulsá-las dali.
Por fim, foram os meninos e meninas da apresentação em Belo Horizonte, de uma pré-estréia com entrada gratuita em que compareceram 400 ou 500 crianças da favela do Acaba Mundo, que fica exatamente ao lado de onde estava montado o circo em que foi apresentada "A Rua da Amargura", dois meses atrás.
O diretor não acompanhou o que ocorreu no momento, mas viu depois, pela televisão, que, aliás, repetiu as cenas quatro vezes. "Elas choravam. Tinha um crioulinho, lindo, de uns olhos deste tamanho, que pegava tudo, com os olhos lacrimejando, dando um depoimento assim, 'eu fiquei triste por causa do Jesus Cristo'." Durante toda a temporada, as crianças da favela chamaram Eduardo Moreira de Jesus.
O diretor tenta uma explicação para as reações todas: "Os limites do Eduardo são muito obscuros para mim. Ele não é um pessoa que fala, 'eu vou até aqui'. Você encontra pessoas assim, quando vai dirigir. Ele, não. Eu lidei, com certeza eu lidei com um instante pessoal do Eduardo para fazer este Cristo, que foi a viuvez dramática, que comovia a todos nós. A dor do Cristo, esta forma com que ele se entrega serenamente à morte... É uma visão cristã, é um dogma, mas que o Eduardo, por mais ateu que se afirmasse, o tempo todo, ele soube ver e entender o sentido da ressurreição."
O "instante pessoal" de que Gabriel Villela fala é a morte de Wanda, a Julieta de "Romeu e Julieta", mulher de Eduardo, que fez Romeu naquela montagem. Os dois, mais a atriz Teuda Bara, que faz a Virgem Maria em "A Rua da Amargura", voltavam de carro de uma viagem em Minas Gerais, quando foram receber a medalha de Tiradentes, em 21 de abril. Houve um acidente e Wanda morreu seis dias depois.
Começou o que Eduardo Moreira chamou de via-crúcis, que passou por momentos como uma explosão de choro do ator, durante um ensaio, duas semanas depois. Ele mesmo lembra: "Naquele momento, eu meio que me desmontei. Não consegui continuar ensaiando. Fui para a Espanha, passei um mês na Espanha, onde tenho uma tia e um primo."
Levou o filho e passou a visitar igrejas, o museu do Prado, onde aos poucos foi questionando o ateu que se proclamava. "Eu tive muita coisa do personagem do Cristo visitando as catedrais da Espanha. A Espanha tem uma espiritualidade, uma característica mística muito forte. E o próprio lugar em que eu fiquei, o Escorial, que foi o lugar que o rei Felipe 2º escolheu para construir o palácio, é um lugar muito especial... Os esotéricos dizem que é um lugar muito especial."
Ele vai relatando, tentando conter-se, as outras passagens. "Aconteceram coisas, assim, curiosas. A mala de Jerusalém, da peça, foi uma mala que eu achei na rua em Madri. Ela estava no bairro dos ciganos e havia um jornal forrando a mala, um jornal de 1961, que foi o ano em que eu nasci. Então, é uma coincidência. Mas para mim é uma coisa extremamente significativa."
Ele se explica falando da iconografia cristã que descobriu no museu do Prado. "É muito difícil você voltar à realidade depois que vai ao Prado, dizem. Toda a representação do Cristo, as coisas medievais. Aquele Cristo de cera, do Velazquez. Teve também a catedral de Toledo, que me impressionou muitíssimo. Na verdade, eu fui para a Espanha num momento muito difícil e aos poucos a coisa foi se ajeitando. Eu não sei, isso do catolicismo espanhol, a força das catedrais. Eu trago uma experiência de muita solidão também, de muito recolhimento, que eu tive na Espanha."
Eduardo Moreira, que é carioca, teve uma educação toda ela em colégios jesuítas. Primeiro no Santo Inácio, do Rio, depois no Loyola, de Belo Horizonte. Afirma, sorrindo, que "nada melhor do que um colégio jesuíta para aprender a desconfiar da existência de Deus". Mas diz também que "muitas vezes a resistência, o anticatolicismo, ele tem uma marca católica muito forte".
Tanto que faz uma conclusão do ano que chamou de via-crúcis, dizendo: "Eu tenho uma formação católica, mas os meus pais são ateus e eu sou bem ligado ao ateísmo, ou pelo menos a uma desconfiança da existência de Deus. Eu acho que essa convicção se viu muito abalada neste tempo de sofrimento. Eu senti uma necessidade grande de buscar uma espiritualidade que me confortasse. E aí é que eu acho curioso o exato momento de buscar este personagem do Cristo."

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