São Paulo, sexta-feira, 6 de janeiro de 1995
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'Arquitetura' disseca os ideais do nazismo

Documentário mostra fundamentos estéticos de Hitler

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Filme: Arquitetura da Destruição
Produção: Suécia, 1989
Direção: Peter Cohen
Narração: Bruno Ganz
Onde: a partir de hoje no Cinesesc
Conhecemos o nazismo pelos seus efeitos: a guerra, os campos de concentração, o genocídio –em suma, um período de trevas sem precedentes na história. Conhecemos bem menos seus fundamentos. É sobre eles que trabalha este documentário realizado pelo diretor Peter Cohen.
Cultiva-se a idéia do nazismo como decorrência da história alemã (a derrota na Primeira Guerra, a crise que se seguiu a ela, o orgulho nacional ferido). Admite-se, então, que um grupo de dementes tomou o poder em 1933 e promoveu as anomalias que se poderiam esperar dessa categoria de pessoas.
Mas essas explicações têm caráter pleonástico. Um acontecimento histórico (a derrota na Primeira Guerra) torna-se justificativa de outro; a demência justifica a demência.
Peter Cohen aborda a questão por outro ângulo. Procura entender como raciocinavam Hitler e seus seguidores, a partir da missão que se atribuiu o nazismo: embelezar o mundo. Não é um ponto de partida inédito. Sabe-se que Hitler tinha a obsessão de "regenerar" a Alemanha –e a Europa– a partir dos conceitos de beleza e saúde.
A demonstração, ao contrário, é. Cohen evita a costumeira identificação entre Hitler e o mal. Ao contrário, o paradoxo nazista, para ele, é: como conceber um mundo dominado pelos ideais de beleza e saúde e chegar onde chegou? Para buscar uma resposta convincente, o diretor revirou arquivos em toda a Europa, EUA, Israel.
Aqui, entra o papel das imagens. Conhecem-se muitas idéias de Hitler: seu culto à Antiguidade, o temor do caos (representado pela arte moderna), a alergia ao que considerava "degeneração" (doenças mentais, sobretudo).
Mas, como elas constróem um pensamento político, um sistema de crenças? Como, enfim, arquitetam a destruição? É a isso que só as imagens podem responder.
Basta ver artistas, médicos, arquitetos com uniformes militares (bem antes da guerra) para entender o caráter nefasto da proximidade entre arte, ciência e poder.
Mas, como também é insidioso, esse caráter se evidencia sobretudo na propaganda produzida pelo nazismo. Cohen justapõe essas peças: uma exposição de arte "purificada" e outra de arte "degenerada", um documentário sobre os efeitos tenebrosos da miscigenação (difundia-se a crença de que ela era responsável por deformações e criava-se disposição favorável à eliminar essas "vítimas do passado") e outro conclamando a população a confiar em seus médicos. Mais adiante, confrontam-se as ruínas de Atenas aos projetos arquitetônicos de Albert Speer.
À medida que se acumulam, as imagens criam um retrato do Reich, não a partir do que nós possamos pensar, e sim a partir de como ele idealizava o mundo.
Desse ponto em diante, o horror nazista, a maneira como soube difundir-se insidiosamente entre os alemães, começam a surgir aos nossos olhos menos como uma anomalia do que como uma concepção das coisas que logo se transfigurava em percepção particular dos fenômenos.
Daí a propor a extinção dos judeus, volta da escravatura, eliminação de civilizações inteiras é um passo. E essas idéias não se tornam menos monstruosas só porque se mostram em seu funcionamento sistemático. Ao contrário.
É quando mostra sua face "humana" (as exposições de arte com idílicas cenas campestres) que o nazismo é mais tenebroso. Nos faz lembrar que os caminhos do mal são bem menos lineares do que tendemos a acreditar. Pior, que não existe um nazismo morto e exorcizado. Ele foi um fenômeno cotidiano, em certos aspectos ameno, quase delicado.
Expor essa natureza e os perigos que traz –para o futuro–, fazê-lo com clareza e inteligência, são aspectos que tornam "Arquitetura da Destruição" um trabalho documental e histórico primoroso.

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Sobre estréias de cinema à pág. 5-4

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