São Paulo, sexta-feira, 6 de janeiro de 1995
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'Parceiros do Crime' é cult de laboratório

INÁCIO ARAUJO
DA REDAÇÃO

Filme: Parceiros do Crime (Killing Zoe)
Produção: EUA, 1993
Direção: Roger Avary
Elenco: Eric Roberts, Julie Delpy, Jean-Hughes Anglade
Estréia: hoje, nos cines Olido 3, Eldorado 6, Belas Artes/sala Portinari, Cinearte 1 e Arouche A
Entre a vida e a morte, os personagens de "Parceiros do Crime" ficam com a morte, já a partir do título original. Zoe é o nome de uma prostituta que se torna amante de Zed (Eric Roberts), um arrombador de cofres americano que vai a Paris participar de um assalto, a convite de um velho amigo de submundo, Eric (Anglade).
Mas em latim "zoe" significa vida –apressa-se em explicar Roger Avary–, o que daria ao título original de seu filme um sentido próximo ao de "matar a vida". Trata-se, com efeito, de mostrar o comportamento de um grupo de assaltantes, antes e durante o roubo de um banco.
Em princípio, existe certo profissionalismo na negatividade: a inconsequência, a necessidade de se drogarem incessantemente, a truculência –tudo que precede o crime propriamente dito– parecem fazer parte de um modo de ser destrutivo, de uma cultura em que o instinto de morte dá as cartas (até pelo que esse comportamento tem de autodestrutivo).
Violência
Isso posto, ninguém vai entrar no cinema esperando um filme ameno. É violento mesmo. Mas a questão não está bem aí. Logo no início, quando Zoe e Zed conhecem-se e transam, a TV está mostrando nada menos do que "Nosferatu, o Vampiro", a primeira versão de "Drácula" para cinema, a mais clássica, feita por F.W. Murnau em 1921.
Poderia ser uma menção até entre a semelhança entre os destinos do conde Orlok e sua amada (a quem precisa puxar para o mundo das trevas) e os de Zed e Zoe, ambos habitantes de um mundo de trevas que aspiram chegar à luz. Poderia ser até a inclusão incômoda de um registro de morte ali onde o ato amoroso fala da vida.
Mas não é nada disso. "Nosferatu" é, hoje, um signo cultural muito forte. Sua citação, nessas circunstâncias, em um filme sobre seres abomináveis, implica pedir caução a um clássico para tudo que vem a seguir.
É um desses gestos intimidatórios, que parecem dizer ao espectador: veja, eu trato de seres e atos abomináveis, mas não estou fazendo violência, estou fazendo cultura.
A questão, no entanto, é saber com um mínimo de precisão a partir de onde o filme e seu objeto começam a se identificar.
A mim, essa identificação parece completa. Nenhum distanciamento, nenhum efeito de espetáculo na violência. Como em "Kalifornia" –exibido em 94–, existe entre a violência e sua representação uma espécie de comunhão satisfeita.
Cult programado
Existe uma espécie de contemplação satisfeita de mutilações, cabeças estourando e coisas que tais, que corresponde menos à irrupção do mal na Terra que a um cálculo mercadológico que vai se tornando frequente no cinema independente americano: o "cult" programado, o filme que investe de tal forma na violência que termina por se tornar ou bem inatacável ou bem inaceitável –de um modo ou de outro, protegido de qualquer juízo.
Talvez essa operação até faça parte de filmes como "Cães de Aluguel", que lançou Quentin Tarantino. Ele foi produtor executivo deste filme; Avary foi roteirista de "Pulp Fiction" (de Tarantino, que ganhou Cannes este ano).
Mas o talento de Tarantino é fulminante, de maneira que essa operação, se existe, consegue ser camuflada. Em Roger Avary, ao contrário, toda a eficácia parece ser posta a serviço das múltiplas defesas de que se cerca para, em última análise, compor uma espécie de "Os Dez Mandamentos" da truculência.
Em todo caso, o registro é tão reacionário quanto o de Cecil B. DeMille. Com a diferença que DeMille ao menos podia se sustentar na guerra fria. Para Avary –e a julgar apenas por este filme de estréia–, é como se, terminada a guerra fria, terminassem também os motivos para continuar vivo.
Se "Parceiros do Crime" tem um mérito é o de escancarar este traço de dandismo niilista cada vez mais presente no cinema americano.

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