São Paulo, sábado, 7 de janeiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Livro traça arqueologia da arte da ilusão

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR-ADJUNTO DA ILUSTRADA

No ano em que se comemora seu centenário a polêmica acerca da paternidade do cinema não poderia deixar de vir à tona. Afinal, quem é o verdadeiro responsável pela invenção do aparelho capaz de registrar e de projetar imagens em movimento?
Os norte-americanos reconhecem o talento múltiplo de Thomas Edison –inventor do fonógrafo– como pioneiro. Já os franceses não arredam pé em conceder todas as honras aos irmãos Lumière.
Chauvinismos à parte, é a vez de um francês roubar de ambos a paternidade da invenção. O pesquisador Laurent Mannoni apresenta sua tese no livro "Le Grand Art de la Lumière e de l'Ombre - Archéologie du Cinéma" (A Grande Arte da Luz e da Sombra - Arqueologia do Cinema).
Para ele, menos que uma revelação súbita e surpreendente, o cinematógrafo foi apenas o elo mais visível de uma longa cadeia de pequenos inventores.
Já no século 4 a.C., o filósofo grego Aristóteles se inquietou com o fenômeno da projeção da luz. Ao observar o comportamento da luz solar que atravessa um orifício e se reflete numa parede, Aristóteles prenunciou a câmara obscura, a primeira das séries de projeções ilusionistas.
No século 13 o monge inglês Roger Bacon, para examinar um eclipse sem cromprometer a vista, propõe "olhar o círculo luminoso que os raios produzem no lugar onde refletem". Seu discípulo John Peckham completa: "Os raios devem ser vistos através de um orifício num lugar obscuro". O uso da luz para projetar uma imagem acaba de ser descoberto.
Quem tirou partido ilusionista da descoberta foi o físico italiano Giovanni Battista della Porta. Em 1588, ele descreve seu prazer em impressionar as pessoas reunindo-as em um recinto escuro com um tecido branco numa parede e um orifício na parede oposta, por onde penetra um raio luminoso.
No exterior, entre a fonte de luz e o orifício, ele fez desfilar formas e figuras que foram projetadas no interior da sala escura.
No século 17 o jesuíta alemão Athanasius Kircher teve a idéia de gravar imagens invertidas em espelhos, que refletiriam, através de lentes biconvexas, as figuras numa tela branca disposta no interior de uma câmara obscura.
Curiosidades temporárias ou não, estas descobertas refletem um período em que os homens se encantaram pela capacidade de projetar as luzes da razão sobre a obscuridade que, acreditavam eles, escondia a natureza das coisas.
O holandês Christiaan Huygens foi um exemplo completo deste novo homem. A lanterna mágica, o invento mais perene do período que antecedeu o cinema, deve a ele a paternidade. Huygens teve, em 1659, a idéia de superpor duas lentes, uma fixa e outra móvel, diante de uma lâmpada a óleo.
Na fixa desenhou um esqueleto sem o crânio e o braço direito e na móvel, as partes que faltavam. Ao mover a lente, a figura retirava ou colocava o crânio no lugar. Para criar a "Dança da Morte", Huygens extrai da natureza seu mistério –as leis da ótica–, mas acaba restituindo às sombras seu direito, construindo um artifício que seduz com seu poder de iludir.
Fantasmas e monstros vieram se juntar a todo tipo de aparições nas fantasmagorias que fizeram do físico Étienne-Gaspard Robertson uma celebridade nos anos da Revolução Francesa. Pinturas de batalhas e paisagens eram temas frequentes dos panoramas –plataformas circulares e móveis que giravam em torno do espectador.
Nos anos 20 e 30 do século 19 o domínio das imagens móveis se acelera. Joseph Plateau concebe o fenaquitiscópio (do grego phenax, enganador, e skopeô, eu examino), composto de um disco com uma série de poses, cada uma representando uma fase de um movimento. Ao girar o disco a figura produzia um movimento completo. Nascia o princípio da animação.
A decomposição das fases do movimento ocupam pesquisas de astrônomos, físicos e fisiologistas do período imediatamente anterior à invenção do cinematógrafo.
O grande passo foi dado por Étienne-Jules Marey, o fisiologista que obteve uma série de registros sucessivos de movimentos numa película em celulóide. Ao captar, sob um único ponto de vista, cada fase de saltos, corridas, vôos e caminhadas, e fixá-los em um suporte transparente, flexível e sensível, o que Marey inventou foi a própria técnica cinematográfica.
O kinetoscópio, inventado por Thomas Edison em 1888, introduziu todas as características que o cinema ainda conserva: um filme em 35 mm em preto-e-branco ou em cores (pintadas a mão), mudo ou sonorizado (com o fonógrafo acoplado), representando cenas interpretadas por atores e gravadas no primeiro dos estúdios (o Black Maria). Por que afinal o mundo não estaria comemorando em 95 os 107 anos do cinema?
Simples. Edison, movido pela ganância, imaginou que ganharia mais se limitasse as visões do kinetoscópio a um espectador por vez (a 25 cents por "sessão").
Sem a emoção coletiva de uma platéia não haveria cinema. Como Henri Langlois, ex-diretor da Cinemateca Francesa, afirmou certa vez, "em uma sala de espetáculos, a arte sai dos espectadores". Isso os irmãos Lumière descobriram com certeza.

Livro: Le Grand Art de la Lumière et de l'Ombre - Archéologie du Cinéma
Autor: Laurent Mannoni
Quanto: 195 francos
Onde encomendar: Livraria Francesa (r. Barão de Itapetininga, 275, tel. 011/231-4555)

Texto Anterior: Brasil é uma grande exposição de arte 'naif'
Próximo Texto: Homenagens marcam 60 anos de Elvis
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.