São Paulo, domingo, 8 de janeiro de 1995
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Inflação e Banco Central independente

ERNANE GALVÊAS

Mais importante que a independência do BC é a competência de sua diretoria

Há sempre boa dose de tolice nas discussões sobre alguns temas do momento, como âncora cambial, independência do Banco Central e outros.
A idéia de que a independência do Banco Central é uma solução para todos os males parte do princípio de que o maior responsável pela inflação brasileira é o déficit do Tesouro Nacional.
A defesa dessa tese está em que o Banco Central independente não financiará o déficit governamental, mesmo se ele foi elaborado pelo Executivo e aprovado pelo Legislativo. Embora recomendável, é uma tese dissociada da realidade nacional.
Evidentemente, não se pode pensar em estabilidade monetária sem equilíbrio fiscal e, por isso mesmo, não faz sentido concentrar toda ênfase na política cambial.
É fácil perceber que, operando a política cambial com uma taxa de câmbio fixa, o Banco Central assegura, em princípio, uma certa estabilidade dos preços das chamadas "tradeble goods", ou seja, das mercadorias que, efetiva ou potencialmente, compõem a pauta das importações e exportações.
Mas uma taxa de câmbio só permanece fixa, a longo prazo, se não houver pressões desequilibradas do balanço de pagamentos. Isto significa dizer que, se houver uma demanda de divisas muito superior à oferta, mais cedo ou mais tarde a taxa de câmbio será desvalorizada.
Até pouco tempo atrás, existia no Brasil uma situação inversa, em que o saldo da balança comercial (exportação menos importação), somado ao ingresso líquido de capitais (financeiros, principalmente), excedia a procura de divisas para importações, remessas de lucros etc.
O resultado foi a acumulação exagerada de reservas, com aceleração da inflação. Quando Banco Central, com grande atraso, percebeu o erro, simplesmente parou de comprar as divisas do mercado financeiro e o resultado imediato foi a queda brusca da taxa de câmbio.
Não é preciso grandes demonstrações para concluir que esse descompasso na atuação do Banco Central traduz uma política cambial equivocada, que não se corrige apenas com a manipulação da taxa de câmbio.
É importante registrar que não existe âncora cambial com taxa de câmbio flutuante, pela própria definição. Ou é âncora e não flutua ou flutua e não é âncora.
O sistema que mais se aproxima da ancoragem é o da conversibilidade, com taxa fixa ou quase fixa. Na medida que a moeda nacional possa ser livremente trocada por moeda estrangeira, sem restrições, que se possa fazer contratos e depósitos em moeda estrangeira, o sistema passa a transmitir ao mercado uma sinalização de estabilidade.
Mesmo assim, podemos ter inflação, porque a inflação não vem só do câmbio, ou melhor, das desvalorizações cambiais. Ela vem de várias fontes, isoladas ou combinadas, tais como o déficit público, a acumulação de reservas, a política de crédito, a taxa de juros, a política salarial. Qualquer dessas fontes pode gerar expansão monetária e, por via de consequências, gerar inflação.
A inflação do Brasil sempre teve causas e fontes variadas. Em primeiro lugar, existe, de fato, uma cultura inflacionária que está na cabeça de todo mundo. Do pequeno agricultor aos donos dos supermercados, passando pelos camelôs, todo mundo reajusta seus preços mensalmente ou antecipa a sua remarcação, de acordo com o que julga que foi ou vai ser a inflação.
Uma das razões básicas para esse comportamento são as altas taxas de juros. Mesmo na hipótese de elevações bruscas, as taxas de juros são uma faca de dois gumes: de um lado, desestimulam a estocagem, de outro, produzem maiores rendimentos financeiros, principalmente para as classes de mais alta renda. E, acima de tudo, as taxas de juros se incorporam aos preços, inexoravelmente.
Expansão de crédito, frustrações de safras, choques externos e aumentos reais de salários (acima da produtividade do trabalho) são causas conhecidas, que em diferentes épocas foram responsáveis pela inflação brasileira.
Nos anos de 1992 e 1993, visivelmente, o maior responsável pela nossa inflação de 1.158% e 2.708%, respectivamente, foi a desordenada política cambial. Desnecessariamente, sem contar com um correspondente superávit fiscal, o Banco Central acumulou US$ 14 bilhões em 1992 e US$ 8,5 bilhões em 1993.
Basta ver as estatísticas monetárias para constatar que a inflação dos últimos três anos vem sendo fabricada pelo Banco Central muito mais do que pelo Tesouro Nacional.
De tudo isso se conclui que um programa de estabilização terá de se basear em várias "âncoras": a fiscal, a monetária, a cambial, a salarial e, até mesmo, alguma âncora dos preços básicos, como energia, combustíveis, transportes, comunicações.
Assim sendo, todo programa de estabilização requer um planejamento global. Nesse contexto, a atuação do Banco Central é muito importante, mas, necessariamente, deve estar inserida na política maior desenhada pelo governo como um todo, comandada pelo ministro da Fazenda.
Mais importante que qualquer conceito de independência do Banco Central é o nível de competência de sua diretoria. Uma diretoria incompetente, em um Banco Central independente, seria um desastre.

ERNANE GAUVÊAS, 72, mestre em Economia pela Universidade de Yale (EUA), é consultor econômico da Confederação Nacional do Comércio (CNC). Foi ministro da Fazenda (governo Figueiredo) e presidente do Banco Central (governos Médici e Costa e Silva).

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