São Paulo, domingo, 8 de janeiro de 1995
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Governo quer burocracia eficaz

ANTONIO KANDIR

Na montagem de novos governos, nada atrai mais a atenção da mídia e da opinião pública do que a escolha de ministros e secretários de Estado.
Cabe notar a pouca atenção que se presta a um personagem menos visível, mas nem por isto de pouca importância na determinação do cunho e eficácia das políticas de governo: os escalões médios e superiores da burocracia pública.
A importância desse personagem deriva do acúmulo de conhecimento acerca das engrenagens da máquina do Estado. Este trunfo lhe confere papel decisivo, seja para dar consequência prática às decisões políticas, seja para distorcê-las ou torná-las inócuas.
Em suma, a burocracia pública é o elo fundamental entre as decisões dos mandatários políticos, eleitos pelo povo e com poder privativo de nomear ministros e secretários e a execução efetiva destas decisões.
Se essa mediação não é eficaz, fica prejudicada não só a efetividade das políticas de governo, como desmoralizado o próprio sistema democrático, pois se quebra o nexo entre a decisão do mandatário político e as consequências práticas que dela decorrem.
Está aí um dos problemas centrais do desenvolvimento político e econômico do Brasil nas duas últimas décadas.
Nos anos de autoritarismo consolidou-se uma burocracia permanente, com quadros novos e quadros vindos do regime anterior. A crise fiscal do Estado, cujas origens remontam à metade final do período autoritário, foi destruindo essa burocracia, cujos membros mais talentosos foram se transferindo para o setor privado, na busca legítima de melhores salários e condições de trabalho.
Desse processo de destruição da burocracia permanente resultou não apenas declínio brutal da qualidade dos recursos humanos do setor público, como também a enfeudação do Estado, dividido crescentemente em corporações preocupadas em defender o "seu pedaço", não raro em associação com interesses privados.
A "desqualificação" da burocracia, somada ao corporativismo crescente, produziu a desarticulação das políticas de governo e sua consequente perda de eficácia.
Do ponto de vista da organização do Estado, nem tudo foi negativo nesses anos de transição democrática. Como mostra Gilda Portugal Gouvêa, em seu notável "Burocracia e Elites Burocráticas no Brasil" (Paulicéia, 1994), houve importantes avanços na reorganização da área econômica, com destaque para a unificação dos Orçamentos da União, com o que se pôs fim ao Orçamento Monetário, instrumento pelo qual o regime autoritário usou e abusou da concessão subsidiada de recursos públicos, à revelia do Congresso e da opinião pública. Com destaque também para a separação das contas do Tesouro e do Banco Central, promovida quando Fernando Henrique ainda era ministro.
Mas há ainda um bom caminho a andar, para reorganizar a burocracia pública e as instituições do Estado e em moldes compatíveis com a democracia, a disciplina fiscal e monetária e a eficácia das demais políticas de governo, em particular na área social, onde é enorme a desproporção entre as necessidades da população e a (má) qualidade do gasto público.
A reorganização das instituições estatais e de suas relações com instituições da sociedade é inseparável de uma política permanente de capacitação profissional no âmbito do setor público. De pouco adiantará haver desenho institucional adequado, se não existir capacidade gerencial para implementar políticas públicas.
Trata-se de trabalho que não renderá frutos políticos imediatos, não produzirá resultados espetaculares no curto prazo e será bombardeado por interesses fisiológicos e corporativos que se têm alimentado continuamente da destruição do Estado. Mas é tarefa imprescindível e a hora de começá-la é agora, antes que seja tarde.

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