São Paulo, domingo, 8 de janeiro de 1995
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Pelé, o óbvio ululante de Nelson Rodrigues

ALBERTO HELENA JR.
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Toda unanimidade é burra, costumava dizer Nelson Rodrigues. Mas que Pelé foi o maior craque de futebol de todos os tempos até mesmo o mestre reconhecia como o óbvio ululante. Não se discute o óbvio, ainda mais se ululante e unânime.
Aliás, o próprio Pelé, quando jogador, sempre fez questão de separar Pelé, o gênio da bola, do cidadão Édson, embora fossem a mesma pessoa. Mas teriam sido mesmo? Você ouvia Pelé falando de Édson ou vice-versa e ficava com a nítida impressão de que eram duas personalidades, senão distintas, diferentes, habitando o mesmo corpo, expressando-se pela mesma voz, com o mesmo sorriso luminoso que cativou mil beldades por esse mundo afora e granjeou a estima dos mais humildes aos mais poderosos.
Lembro-me que, logo depois da Copa de 70, o meia Overath, um dos maiores talentos da história do futebol alemão, lançou um livro de memórias. No capítulo que tocava a Pelé, o frio e cerebral Overath preferiu seguir pelas veredas do sortilégio. Confessava sem nenhum pudor que sentia medo de Pelé. Medo físico, não desses medos triviais, de levantar um pontapé maldoso ou uma cotovelada assassina. Nada disso.
Para Overath, o que acontecia com Pelé era uma transfiguração, uma inexplicável alquimia, em que a personalidade cordata e irresistivelmente simpática de Pelé, na hora dos apertos de mão, subitamente era substituída por outra, como se os quatro elementos entrassem em fúria quando do rolar da bola.
Não foi à toa que o cronista Mário Morais, ao vê-lo dar seus primeiros passos e passes e dribles e cabeçadas e chutes certeiros, chamou-o logo de Fera, com F maiúsculo, pois Pelé não era uma fera, era a Fera. Bem mais tarde, virou uma adjetivação que se vulgarizou no Brasil.
É verdade que não foi de estalo que se estabeleceu a unanimidade em torno de Pelé. Os cariocas, no começo, relutaram um pouco. Brandiam Zizinho, outro gênio, afagavam Garrincha, o antigênio.
Os argentinos sorriam com picardia e superioridade enquanto cinzelavam em cobre o nome de Moreno, sílaba por sílaba. E os europeus? Por falta de alguém menos específico que sir Stanley Matthews, dividiam-se entre dois portenhos expatriados: os italianos preferiam Sívori; os espanhóis, Alfredo Di Stefano, regente do supercampeão Real Madrid.
Eu disse preferiam? Suspeito que ainda preferem. Outro dia, julguei captar essa suspeita por trás dos elogios que outro personagem rodrigueano, o espanhol Hans Henninger –o Marinheiro Sueco de Nelson Rodrigues–, desfiava durante a exumação de preciosas cenas da final da Copa da Europa de 60, entre o Real de Di Stefano e o Sttutgart, na Globosat.
Hans insinuava que don Alfredo era mais solidário que Pelé, simplesmente porque, aos 34 anos, preferia buscar o jogo, armá-lo, trabalhar a bola com mais cérebro que empuche. Di Stefano foi um cracaço. Mas Pelé foi simplesmente Pelé.

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