São Paulo, domingo, 8 de janeiro de 1995
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A REBELIÃO DAS ELITES

CHRISTOPHER LASCH

Enquanto prossegue o colapso da vida urbana nessas cidades inchadas, não só os pobres como também as classes médias vivenciam condições inimagináveis até alguns anos atrás, espera-se que os padrões de vida da classe média devam cair em todo o (um tanto esperançosamente intitulado) mundo em desenvolvimento. Num país como o Peru, antes uma nação próspera, com perspectivas razoáveis de desenvolver instituições parlamentares, a classe média, para todos os efeitos, já não existe mais.
Uma classe média, como bem nos lembra Walter Russell Mead em seu estudo sobre o declínio do império americano, "Mortal Splendor" (Esplendor Mortal), "não surge do nada". Seu poder e sua quantidade "dependem da riqueza global da economia doméstica"; desse modo, em países onde "a riqueza está concentrada nas mãos de uma pequena oligarquia e o resto da população é desesperamente pobre, a classe média só pode crescer até um certo limite (...) (Ela) nunca consegue escapar de seu papel original de classe servidora da oligarquia". Infelizmente, essa descrição se aplica agora a uma lista crescente de nações que atingiram prematuramente os limites do desenvolvimento econômico, países onde uma "parcela substancial de seu produto nacional vai para investidores ou credores estrangeiros". Destino como esse pode muito bem aguardar nações industriais como os Estados Unidos.
O mundo do fim do século 20 apresenta, pois, um espetáculo curioso. Por um lado, está hoje unido, por intermédio do mercado, como nunca esteve antes. O capital e o trabalho fluem livres através das fronteiras políticas que parecem cada vez mais artificiais e ineficientes. A cultura popular segue no mesmo rumo. Por outro lado, as lealdades tribais nunca foram tão agressivamente incentivadas. Conflitos religiosos e étnicos explodem num país atrás do outro: na Índia e no Sri Lanka, em grande parte da África, na ex-União Soviética e na ex-Iugoslávia.
Trata-se do enfraquecimento do Estado-nação, que fundamenta ambos esses acontecimentos –o movimento pela unificação e o aparentemente contraditório movimento rumo à fragmentação. O Estado já não pode conter os conflitos étnicos, nem as forças que conduzem à globalização. Ideologicamente, o nacionalismo está sendo atacado de ambos os lados: pelos defensores do particularismo étnico e racial, e também por aqueles que argumentam que a única esperança para a paz encontra-se na internacionalização de tudo, de pesos e medidas à imaginação artística.
Os temores de que a linguagem internacional do dinheiro falará mais alto do que os dialetos locais inspiram a reafirmação do particularismo étnico na Europa, enquanto que a decadência do Estado-nação enfraquece a única autoridade capaz de controlar as rivalidades étnicas. O renascimento do tribalismo, sucessivamente, reforça um cosmopolitismo reativo entre as elites. Muito curiosamente, é Robert Reich, apesar de sua admiração pela nova elite de "analistas simbólicos", que fornece uma das mais penetrantes descrições do "lado obscuro do cosmopolitismo".
Sem vínculos de nacionalidade, ele nos lembra, as pessoas têm pouca inclinação por fazer sacrifícios ou aceitar a responsabilidade por seus atos. "Nós aprendemos a nos sentir responsáveis pelos outros porque compartilhamos com eles uma história em comum (...), uma cultura em comum (...), um destino em comum". A desnacionalização do empreendimento comercial tende a produzir uma classe de cosmopolitas que se enxergam como "cidadãos do mundo, mas sem aceitar(...) qualquer uma das obrigações que a cidadania em um Estado normalmente implica".
Mas o cosmopolitismo dos poucos favorecidos, por ser ignorante da prática da cidadania, acaba sendo uma forma mais elevada de provincianismo. Ao invés de sustentar os serviços públicos, as novas elites aplicam seu dinheiro na melhoria de seus próprios encraves fechados. Elas pagam de bom grado escolas particulares, polícia privada e sistemas particulares de coleta de lixo; mas deram um jeito de se livrar, até um ponto notável, da obrigação de contribuir com o tesouro nacional. Seu reconhecimento das obrigações cívicas não se estende além de própria vizinhança imediata. A "secessão dos analistas simbólicos", como diz Reich, nos fornece um exemplo particularmente impressionante da rebelião das elites contra as restrições de tempo e lugar.
A decadência das nações está intimamente ligada à decadência global da classe média. É a crise da classe média e não apenas o crescente abismo entre riqueza e pobreza, que precisa ser enfatizada numa análise sensata de nossas perspectivas. Desde os séculos 16 e 17, a fortuna do Estado-nação está ligada à fortuna das classes comerciais e manufatureiras. Os fundadores das nações modernas –quer fossem expoentes do privilégio real como Louis 14 ou republicanos como Washington e Lafayette–, voltaram-se para essa classe na busca de apoio para sua luta contra a nobreza feudal.
Grande parte do apelo do nacionalismo está na habilidade do estado em estabelecer um mercado comum dentro de suas fronteiras, para reforçar um sistema uniforme de justiça, e para estender a cidadania tanto aos pequenos proprietários quanto aos comerciantes ricos, ambos excluídos do poder no velho regime. A classe média compreensivelmente tornou-se o mais patriótico (para não dizer jingoísta e militarista) dos elementos da sociedade.
Mas os traços repulsivos do nacionalismo da classe média não devem ofuscar suas contribuições positivas na forma de um senso de território altamente desenvolvido, além de um respeito pela continuidade histórica –selos de garantia da sensibilidade da classe média, que podem ser apreciados mais inteiramente agora que a cultura da classe média está batendo em retirada em todos os lugares.
Quaisquer que sejam suas falhas, o nacionalismo da classe média proporciona um território em comum, padrões em comum, um quadro de referências em comum, sem os quais a sociedade se dissolve em nada mais do que facções em luta, como os fundadores da América compreenderam tão bem. A rebelião das massas que Ortega temia já não é uma ameaça plausível. Mas a rebelião das elites contra as arraigadas tradições de localidade, obrigação e prudência pode um dia desencadear uma guerra de todos contra todos.

Tradução de Marilene Felinto

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