São Paulo, domingo, 8 de janeiro de 1995
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História confirma diagnóstico de Lasch

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Eles são os melhores e mais brilhantes. São sofisticados; cosmopolitas; liberais; esportistas; curiosos; inteligentes e criativos. Formam 20% da população, concentram 50% da renda e, sozinhos, produzem, distribuem e controlam a informação do mais rico e poderoso país do mundo. Ganharam um nome, "analistas simbólicos", e constituem a "ruling class" que serve de modelo ao resto do Ocidente: financistas; consultores; universitários; artistas; advogados; publicitários; analistas de sistemas; cientistas; diretores de arte; jornalistas; produtores de cinema e televisão etc.
Eis a foto da elite americana feita por Lasch em seu livro póstumo, "A Rebelião das Elites". Em "A Cultura do Narcisismo" e "O Mínimo Eu", Lasch analisava a moral americana dos anos 70-80, antevendo o que seria um mundo dominado pela ética da sobrevivência narcísica. Muitos deram de ombros. Tratava-se, diziam, de um intelectual menor, nada "rigoroso" na descrição de seus métodos e fontes de pesquisa. Além do que, em pleno pós-modernismo, ainda citava Freud, Marx e a Escola de Frankfurt. O que queria Lasch, perguntavam eles? Ressuscitar as "grandes narrativas"? Ou que voltássemos à era das patriotadas, do realismo socialista e da repressão sexual?
A ponte cultural entre os dois grupos rompeu-se, assinala Lasch. As crenças e hábitos não são mais os mesmos, e o sentido do que é público e de interesse geral perdeu-se por completo. Cada um privatiza, a seu modo, o que pode e tem direito. Os ricos, a saúde, a educação, a coleta de lixo, as guaritas e guardas de segurança etc; os pobres, o crime, a degradação e a miséria. Duas classes sem medida em comum, numa nação partida, que um dia quis ser de todos e para todos.
No Brasil, o que se começa a festejar acima do Rio Grande tem o estranho aspecto de "déjà vu". Os Estados Unidos parecem refazer o pavoroso percurso que fizemos. As razões histórico-políticas são distintas; o resultado é sensivelmente igual. Tempos atrás, as elites brasileiras apartavam-se do resto do povo com má consciência. Bem ou mal sabiam o que faziam, mantendo à míngua os que exploravam. Vez por outra reliam "A Cabana do Pai Tomás" e admitiam que os oprimidos tinham qualquer coisa a ver com eles.
Depois, antes mesmo dos americanos, fizeram sua "revolta". Perderam a culpa, esqueceram as "infantilidades" dos anos 60-70 e converteram-se à "maturidade" do mercado. Chega de saudade, disseram. A história mostrou para onde soprava o vento. Adeus aos fantasmas políticos. Hoje, como seus pares americanos, comportam-se, em casa, como ingleses de Hollywood recém-chegados ao extremo-oriente: ar de "onde estamos?", em tempos de paz, e rugas de apreensão quando "os nativos estão inquietos!" Efeito imediato: sequestros; assaltos; mendincância; delinquência infantil; banditismo; tráfico e consumo de cocaína de dimensões incontroláveis. Quem duvidar, venha ao Rio. Com ou sem exército em favelas!
Na cultura da indiferença, a guerra é de todos contra todos, conclui Lasch, corroborando o que sabemos de cor e salteado. O bem-estar narcísico exige dinheiro, muito dinheiro. A proteção do patrimônio tem um preço alto e não existem instituições de caridade distribuindo Prozac, para depressão; Lexotan, para ansiedade; Dormonid, para insônia; Antak, para gastrites e úlceras de stress etc. Sem contar que a vida entre viagens internacionais, geringonças "high-tech", temporadas em spas, prevenção do enfarte e terapias de todos os tipos, para todas insatisfações, também custa muito caro.
Os que estão de fora, olham tudo com inveja. Mas como não podem chegar lá, ou aceitam dopar-se com televisão ou seguem o caminho mais curto para terem o que precisam: droga e destruição. O narcisismo dos ricos reflete-se no vandalismo dos párias. A nova moralidade secreta sua própria dissolução. Não se trata, como no passado, de blocos inimigos divididos por raça, sexo, classe ou religião. Na cultura narcísica, ninguém ocupa o lugar do ideal cobiçado e ambivalentemente desejado. Não há disputa por postos ou pessoas; há disputa por gozo. Cria-se, então, uma insatisfação permanente, que nada pode fazer cessar, exceto a destruição do que excita e faz gozar.
Foi isto que Quentin Tarantino percebeu. Quando tudo se torna indiferente, morte e vida se equivalem. Pouco importa quem ou o que se mata; importa o frisson de matar. Esta ninfomania sanguinária, de "Cães de Aluguel" e "Pulp Fiction", é o sobejo da indiferença das elites, oferecido aos "routine producers" e aos deserdados das grandes cidades. Obviamente, nem todos os excluídos das redes cibernéticas e das gordas contas bancárias serão marginais ou assassinos. Mas se o forem, terão fortes chances de fazer do assassinato uma forma de excitação compulsiva que não termina com a morte de nenhuma vítima em particular.

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