São Paulo, domingo, 8 de janeiro de 1995
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A ciência como metáfora

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Não há contradição entre ser um químico e um escritor: ao contrário, há um recíproco reforço, dizia o escritor e químico italiano Primo Levi (1919-1987), autor do romance autobiográfico "A Tabela Periódica" (1975), raro e feliz casamento entre ciência e literatura.
"A Tabela Periódica de Mendeleiev, que justamente naquelas semanas aprendíamos laboriosamente a desenredar, era uma poesia, maior e mais solene do que todas as poesias digeridas no ginásio: pensando bem, tinha até rima!", Levi escreve.
O romance conta a trajetória do jovem Levi, de origem judia, desde seus antepassados habitantes do Piemonte italiano, passando por sua paixão adolescente pela química, por sua formação universitária na Itália fascista da Segunda Guerra, sua atuação na Resistência, até sua prisão por um ano no campo de concentração de Auschwitz, na Alemanha, e sua volta à Itália no pós-guerra.
Os temas desenvolvidos por Levi em "A Tabela Periódica" já apareciam em seus dois primeiros romances: "É Isto Um Homem?" (1947), testemunho indignado do prisioneiro do campo de extermínio alemão, e "A Trégua" (1963), relato da viagem de volta de Auschwitz até a Itália.
A literatura de Levi insere-se no neo-realismo literário italiano, não uma escola literária propriamente dita, mas uma agitação cultural interdisciplinar (que atingiu a pintura, o cinema e a literatura) surgida no início da década de 40 para "reencontrar o real longamente deformado pela retórica do regime fascista ou mascarado pela introspecção e pela metafísica".
Reforçado e confirmado pela guerra e pelo movimento de Resistência, o neo-realismo na literatura fez oposição declarada ao fascismo, privilegiando temas como a luta pela liberdade política e de expressão, a opressão e a miséria dos camponeses e operários, tentativa desesperada de criar elos entre o livro e o leitor.
A narrativa ganhou o caráter de denúncia e documentação, sendo que seu autor, "não profissional por definição, chega à literatura justamente pelo caráter excepcional de sua experiência (...). O modelo passa a ser o da crônica 'partigiana' da resistência vivida, ou então o memorial dos que sobrevivem à deportação para a Alemanha."
É esse o caso de Primo Levi, cuja literatura soube superar o engajamento documentalista, transcender o testemunho pessoal –sem deixar de sê-lo de maneira fortemente autobiográfica; o narrador é o próprio Levi– e abranger visão ampla e original de uma época.
Em "A Tabela Periódica", o escritor transpõe para o universo da ficção a classificação sistemática dos elementos químicos. Os capítulos do romance são intitulados segundo os elementos (argônio, hidrogênio, potássio etc), mas não se trata da transposição mecânica e estéril das especificidades da química para a ficção.
A transposição é literária tanto no universo da linguagem quanto no dos temas. Levi diz no livro que a química deixou de ser fonte de certezas para ele quando ainda estava no quarto ano de química pura. Desde então, sentiu necessidade de escrever para entender as coisas do espírito.
É neste momento que ocorre a verificação: a matéria a cujo núcleo a química conduzia é a mesma trabalhada na tessitura da narrativa literária. Então Primo Levi vira escritor, e escreve o livro, não só para contar sua história pessoal de judeu perseguido pelo fascismo italiano e pelo nazismo alemão, como também para que o mundo soubesse tudo sobre como vivem "os transformadores da matéria", os químicos:
"Me interessavam mais as histórias da química solitária, inerme e pedestre, feita à medida do homem, que com poucas exceções fora a minha: mas que fora também a química dos fundadores, que não trabalhavam em equipe e sim sozinhos, em meio à indiferença de seu tempo, em geral sem ganhos, e enfrentavam a matéria sem ajuda, com o cérebro e as mãos, com a razão e a fantasia."
Ou seja: o químico é o escritor e vice-versa. A química e a literatura levariam, juntas, o homem a se tornar "o senhor da matéria", para só então compreender as coisas do espírito.
A química e a física a que se dedicava o jovem Levi só serviam de antídoto ao fascismo porque eram claras e distintas, como uma linguagem literária, digamos assim: "eram claras e distintas, a cada passo verificáveis, e não tecidas de mentiras e vaidades, como o rádio e os jornais".
Era precisamente da dinâmica dos elementos e dos processos químicos que o escritor tirava consequências filosóficas que desvelavam os mistérios do mundo ou da mente tortuosa dos homens:
"Destilar é bonito", Levi observa no romance. "Antes de tudo, porque é um ofício lento, filosófico e silencioso, que te mantém ocupado mas deixa tempo para pensar noutras coisas, um pouco como andar de bicicleta. Mais ainda, porque comporta uma metamorfose: de líquido a vapor (invisível), e deste novamente a líquido; mas neste caminho duplo, para cima e para baixo, atinge-se a pureza, condição ambígua e fascinante, que parte da química e vai muito longe."
Ou seja: na Itália da guerra, de pureza se falava muito, da "pureza" da raça ariana, sobre a qual publicava-se então "A Defesa da Raça". Pois, na química do romance de Levi, é a impureza que ganha o valor que de fato tem:
"O zinco, tão terno, delicado e dócil diante dos ácidos, que o corroem imediatamente, comporta-se porém de modo muito diferente quando é muito puro: então resiste obstinadamente ao ataque. Daí se podiam extrair duas consequências filosóficas contrastantes: o elogio da pureza, que protege contra o mal como uma couraça; o elogio da impureza, que propicia as mudanças, isto é, a vida. Descartei a primeira, desagradavelmente moralista, e me detive na consideração da segunda, que me era mais afim (...). Sou a impureza que faz reagir o zinco, sou o grão de sal e de mostarda".
"A Tabela Periódica" é um livro singular, que inventa sua linguagem a partir de três outras: os códigos da química, o dialeto dos judeus do Piemonte e a língua alemã, que Primo Levi falava muito bem e que atravessa seu romance como a ponta de uma faca –só de vez em quando, com um ou outro termo, mas é o suficiente para inaugurar a "Urstoff" (a substância primigênia) de sua invenção literária.
Se fosse um dos elementos químicos a cujo estudo dedicou toda a sua vida, Primo Levi talvez fosse o hidrogênio, "o mesmo que queima no sol e nas estrelas e de cuja condensação, em eterno silêncio, se formam os universos."
Pelo menos era assim que ele escrevia, no silêncio humilde e modesto de quem sabe "desde o começo que seu tema é desesperado, os meios são frágeis, e o ofício de revestir os fatos com palavras está fadado ao malogro em sua essência profunda."

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