São Paulo, domingo, 8 de janeiro de 1995
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O espelho espanhol de FHC

JOSÉ LUÍS FIORI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Gostaria que os adeptos de FHC, da nova ordem internacional, do consenso de Washington, da qualidade total, que alguém, enfim, explicasse onde está o admirável mundo novo que eles anunciam."
Otavio Frias Filho, na Folha

1- A tão falada vaidade de Fernando Henrique Cardoso pelo menos nunca o impediu de reconhecer em Felipe Gonzales –há 12 anos presidente do governo da Espanha– seuverdadeiro alter ego. Ou quem sabe por isso mesmo, pois afinal, nesta segunda metade de século, Felipe Gonzales tem sido justamente o líder político ao qual se costuma atribuir o mais vertiginoso, completo e duradouro sucesso de poder e imagem pública. Uma boa pista, talvez a única, para quem queira antever alguma coisa dos caminhos futuros do governo que agora se inicia, apoiado, aparentemente, por Deus e todo mundo. Um governo cercado de um consenso tão ensurdecedor que reduz a conjuntura quase só à figura presidencial e sua ambição mais notória: deixar sua marca pessoal na história brasileira.
Para tanto, Fernando Henrique Cardoso obviamente não se conformará com o papel de simples "estabilizador econômico", igual a qualquer um de seus predecessores latino-americanos, que, aliás, têm se destacado pela mediocridade intelectual ou pelo gangsterismo político.
Nesse sentido, tem razão, e demonstra até um certo bom gosto, ao querer espelhar-se de preferência no modelo Felipe Gonzales, com sua eterna jaqueta de couro e seu estilo entre rebelde e bem comportado, presidente do governo espanhol aos 41 anos de idade, ídolo tão logo empossado, reunindo um passado socialista, avalizado pela crueza de uma Guerra Civil a um projeto de modernidade que passaria pela reinserção européia da velha Espanha.
Nos anos 80, os novos ídolos passaram a ser invariavelmente yuppies e conservadores, figurino vestido, ainda que de forma um pouco tardia, pela maior parte da "equipe econômica" do novo presidente. E, nos anos 90, o charme de Praga e de sua revolução de veludo fizeram de Václav Havel o líder de um novo "show-case" mundial. Mas nada disso conseguiu ensombrecer a imagem a um só tempo moderna e carismática de Felipe Gonzales, nem o sucesso de marketing com que difundiu o "social-liberalismo" espanhol, que os tucanos brasileiros assumem explicitamente como seu modelo programático de governo.
Há razões de sobra, portanto, para olhar para a Espanha nesse momento, mais do que para Argentina ou México. Seja para entender a estratégia pessoal de poder do novo presidente, seja, sobretudo, para explorar o perfil de longo prazo desse "maravilhoso mundo novo que ele nos anuncia".
2 - Ninguém desconhece que Felipe Gonzalez ascendeu ao poder com a reorganização da social-democracia européia, que, nos anos 70, sob a batuta alemã, redesenhou os partidos socialistas "mediterrâneos". Mas qual foi a estratégia de poder que lhe trouxe sucesso tão maior e persistente do que o dos seus vizinhos portugueses, italianos e franceses?
Em primeiro lugar, a lucidez com que percebeu e aproveitou-se do vazio deixado, após a Guerra Civil, pelas velhas lideranças socialistas, desde então no exílio e incapazes de contestar a hegemonia comunista na frente de resistência ao franquismo.
Em segundo lugar, a rapidez com que ocupou e reorganizou, na segunda metade dos anos 60, a partir de seu Grupo de Sevilha, o que restava do socialismo espanhol. De maneira tal que, em poucos anos e ainda na ilegalidade, construiu a rede de apoios através da Espanha que lhe permitiu, no congresso realizado em 1974, em Suresnes, na França, desfazer-se da velha guarda remanescente da Guerra Civil e assumir a direção do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE).
Em terceiro lugar, a competência com que conseguiu colocar sua pequena organização como ponto de equilíbrio entre os grandes partidos que negociaram a transição democrática consagrada em Moncloa e na Constituição de 1978.
Em quarto lugar, a ousadia com que usou sua própria renúncia e recondução à direção partidária, em maio de 1979, para obrigar o PSOE a abandonar o seu velho programa de inspiração marxista, alinhando-se a partir de então com a social-democracia alemã.
Em quinto, a habilidade que demonstrou para aproveitar-se dos conflitos entre a UCD (União de Centro Democrático), de Adolfo Suárez, e o Partido Comunista Espanhol, de Santiago Carrillo –os verdadeiros artífices da "ruptura pactada" espanhola–, para desfazer-se dos seus aliados de "transição" e surgir, depois do fracassado golpe militar de fevereiro de 1981, como única alternativa capaz de conduzir a Espanha, a partir de sua vitória eleitoral em outubro de 1982, pelo "caminho da modernidade.
Em sexto e último lugar, a sua verdadeira "obra-prima": a forma como ocupou o espaço político-intelectual espanhol, transformando-se, simultaneamente, na solução inevitável para os seus setores empresariais e na única forma possível de socialismo para os setores intelectuais. Fenômeno só reconhecido muitos anos mais tarde por Mario Conde, ex-presidente do Banesto –um dos maiores bancos privados da Espanha– e yuppie financeiro máximo da era Gonzales, ao escrever, recentemente, depois de cair em desgraça, que, quando vem originariamente da esquerda o grupo de operadores do consenso liberal, fica quase impossível encontrar espaço para qualquer outra alternativa intelectual ou política.
Desde 1982, Felipe ganhou sucessivamente quatro mandatos como presidente do governo espanhol, sustentado duas vezes por uma maioria exclusivamente socialista e mais duas outras vezes por uma maioria resultante da sua aliança com a direita nacionalista basca e catalã.
Nesses 12 anos ininterruptos de poder, governou apoiado por um verdadeiro rolo compressor parlamentar, majoritário e absolutamente disciplinado, que lhe permitiu aprovação automática de seus projetos e deu-lhe o controle, direto ou indireto, do Conselho Geral do Poder Judiciário, do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Contas, além, evidentemente, do controle inconteste do Conselho de Estado e do Banco de Espanha.
Ao mesmo tempo, seguindo uma estratégia de estreitamento progressivo do espaço político da oposição, assumiu o controle da cúpula de quase todas as administrações públicas descentralizadas, num movimento de ocupação institucional avassalador, que lhe permitiu, simultaneamente, assegurar o exercício inconteste do poder político espanhol e expandir, através das instituições públicas, a sua organização partidária, que passou, em dez anos, de cem para 300 mil militantes. O verdadeiro modelo original do que mais tarde os cientistas políticos consagraram como sendo as "condições políticas ideais de governabilidade". Condição excepcional de poder que permitiu a Gonzalez ir abandonando, sem maiores custos pessoais, as idéias expostas em seu programa de governo, apresentado nas eleições vitoriosas de 1982: uma espécie de neo-keynisianismo que combinava estabilização negociada com reestruturação industrial e crescimento econômico, mais aumento do emprego e da equidade. O que talvez pudéssemos chamar de social-liberalismo em estado teórico.
3 - Na prática, entretanto, do ponto de vista de sua política econômica, Gonzales optou, desde 1982, por uma linha de caráter rigorosamente ortodoxa, e em poucos meses de governo, como reconhece o "El País", jornal de inconfundível simpatia socialista, "a linguagem oficial já estava em maior sintonia com o fundo Monetário Internacional, ou com a OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico), do que com o próprio programa do PSOE".
Numa primeira etapa de seu governo, até mais ou menos 1986, esta espécie de esquizofrenia foi racionalizada do ângulo partidário como uma "exigência das condições econômicas mundiais; supunha-se que era uma fase provisória, necessária, em primeiro lugar, pelas dificuldades em que se encontrava, naqueles momentos, a economia espanhola e, em segundo lugar, porque, dado o grau de internacionalização da realidade econômica, um único país não podia adotar posturas muito discrepantes das políticas implementadas pelos outros governos" ( "Cuatro Semanas", 02/93).
Mas não foi só nesse ponto que Gonzales conseguiu contradizer, na prática, seu próprio programa de governo. Três anos depois de jurar que jamais apoiaria a entrada da Espanha na OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), convocou e venceu um plebiscito onde defendeu pessoalmente essa solução. Um magistral sucesso de marketing, uma vez que sua imagem saiu incólume, graças, de novo, ao uso eficiente do mesmo argumento "realista: "só há uma alternativa, imposta pelas condições objetivas".
O extraordinário é que Gonzales não logrou convencer apenas o seu PSOE e a opinião pública espanhola de que esta era a única política possível"; conseguiu também manter a sua excelente imagem internacional e transformar seu governo e sua estratégia econômica, social e política em paradigma para o resto do mundo. O que só foi possível mantendo rigorosamente à sombra do "milagre espanhol" o que José Borell, atual ministro de Obras Públicas e Transportes do quarto governo Gonzales, reconhece como um dado de realidade: "durante esses 12 anos, as mensagens da ideologia liberal do Banco de Espanha têm sido mais importantes que todos os congressos do PSOE" ( El País, 6/03/94).
4 - Mas, se a história real foi essa, que lugar ocupou nesse contexto a famosa "pactación social", associada à Moncloa e transformada em marca registrada do social-liberalismo espanhol? Afinal, desde os anos 70, a literatura fala das duas estratégias contrapostas de estabilização e ajustamento econômico: a das políticas de renda negociadas ao estilo espanhol e a da imposição, pela via da recessão e do desemprego, atribuída, invariavelmente, a Margareth Thatcher.
"Los Pactos de Moncloa", assinados em 21 de outubro de 1977, foram absolutamente decisivos, do ponto de vista político, para viabilizar o enraizamento democrático na Espanha. Fazia-se uma primeira experiência de "ruptura concertada", responsável pelo sucesso da Constituiente espanhola de 1978. Porém, sua eficácia econômica foi muito limitada e rapidamente abandonada, sem que tivesse sido cumprida nenhuma das cláusulas "sociais" do pacto.
Mas o mais importante está no fato de que, dos seis grandes pactos assinados a partir de Moncloa (o próprio Moncloa e mais cinco que, dada a extensão e desimportância –para nossos objetivos– dos nomes completos, permite-nos identificá-los apenas por suas siglas: D.L. Abril, AMI, ANE, AI e AES), apenas dois o foram depois da posse de Gonzales, e um deles, El Acuerdo Interconfederal (AI, 1983) não contou com a participação do governo.
Resumindo o ponto, durante os 12 anos de governo socioliberal, só houve de fato um acordo tripartite apoiado pelo governo, o Acuerdo Económico y Social (AES), assinado em 1985, mas que foi na prática uma resposta emergencial à intensificação dos conflitos sindicais e à ruptura das relações entre o PSOE e sua central sindical, a UGT, iniciada em 1984, por divergirem sobre a abrangência que deveria ter a seguridade social espanhola.
Na verdade, como reconheceria mais tarde o primeiro ministro da Economia de Gonzales, Miguel Boyer, a política socioeconômica de Gonzalez "foi uma continuação da do governo conservador de Calvo Sotelo" e teve um único objetivo permanente: "Controlar a inflação a qualquer preço. Com os instrumentos da redução salarial, de uma política monetária restritiva, com altas taxas de juros e com a redução do déficit público –fundamentalmente através da limitação dos gastos" ( "Cuatro Semanas", 02/93).
Mas a realidade foi um pouco pior. Não por acaso, a história econômica espanhola já fala, hoje, de dois tempos na trajetória da estabilização espanhola: o tempo "del ajuste blando", até 1982, e o "del ajuste duro", exatamente a partir daquele ano.
As cifras, nesse ponto, falam de forma mais clara e categórica, sem deixar lugar para nenhuma dúvida. O PSOE assumiu o governo em 1982, prometendo 800 mil novos postos de trabalho, e concluiu seu primeiro mandato, em 1986, com mais 740 mil novos desempregados. Enquanto isto, o Conselho Econômico e Social, criado pela nova Constituição com vistas à formação de um fórum permanente de negociação corporativa, jamais foi regulamentado, nem naquele momento, nem até 1994.
Em síntese, a estabilização foi uma espécie de objetivo "crônico" de quase toda a era socioliberal. O mais importante, contudo, é que a estratégia de ajuste escolhida por Gonzalez não foi, na prática, a concertación social em torno das políticas de renda. Foi, rigorosamente, a da imposição, pela via do "rolo compressor", representado por sua maioria absoluta no Parlamento, e, pior ainda, pela via da promoção ativa do desemprego, o que até hoje continua sendo considerado uma exclusividade da sra. Thatcher.
5 - Mas então, em que consistiu e qual a originalidade do "milagre econômico" espanhol? Se tomarmos Moncloa como referência, o milagre econômico espanhol se resume, em termos cronológicos, à soma de 12 anos de recessão (1977-85 e 1991-94) e quatro (1986-90) de crescimento. Ou oito e quatro, respectivamente, na era Gonzalez, que teve três ministros da economia com um objetivo comum e hierarquizador de todos os demais: a redução da inflação, ficando a questão da retomada do crescimento delegada quase exclusivamente ao dinamismo do mercado e dos capitais privados nacionais e internacionais.
Assim, entre 1982 e 1986, a ortodoxia dominante apontava para desvalorização cambial, altas taxas de juros, arrocho salarial e austeridade fiscal e monetária. E tudo foi feito de forma tão rigorosa que a recessão prolongou-se até 1985, enquanto a inflação cedia lentamente depois de alcançar a casa de um dígito.
A entrada da Espanha, em 1986, no Mercado Comum, e, em 1989, no Sistema Monetário Europeu, reorientou a estratégia político-econômica de Gonzalez em direção à nova ortodoxia global: abertura e desregulação da economia. Medidas que, em combinação com a política de juros altos, já agora destinados a manter o valor da peseta, provocaram uma sobrevalorização cambial, responsável pelo crescente déficit comercial espanhol, financiado com a importação de capitais de curto e longo prazo, atraídos pelos juros extremamente

Continua à pág. 6-11

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