São Paulo, domingo, 8 de janeiro de 1995
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O espelho espanhol de FHC

JOSÉ LUÍS FIORI

elevados com relação à média da Comunidade Econômica Européia (CEE). Este quadro de desequilíbrio externo piorou ainda mais com a entrada da Espanha no Sistema Monetário Europeu (SME), o equivalente de nossa dolarização. E, como efeito das decisões tomadas pela CEE, em Maastrich, a Espanha adota, em 1992, um Plano de Convergência que acrescenta, à meta da desinflação, nunca alcançada de forma satisfatória, as novas teses ortodoxas: reformas estruturais do mercado de trabalho e da seguridade social, somadas à desregulação, liberalização e redução do setor público.
Mas, no momento em que a Espanha "reajustava" sua ortodoxia pela terceira vez, sua economia já presenciava a crise atual, uma das mais profundas recessões da história espanhola, obrigando Gonzalez, em 1993, a abandonar temporariamente o SME, desvalorizando a sua moeda em 36,4% em menos de 16 meses.
Alguns, entretanto, consideram que a medida chegou tarde e só teve efeitos superficiais. Em 1994, a dívida pública, que vinha crescendo apesar da austeridade fiscal, deverá ultrapassar a casa dos 60% do PIB, prevendo-se um déficit público da ordem de 7,5% no mesmo ano. E, diante do mesmos problemas que se põem e repõem desde 82, a solução proposta por Gonzales são as nossas conhecidas reformas estruturais do mercado de trabalho e da seguridade social, aliadas àquelas mais radicais de desregulação, liberalização e diminuição do setor público, além do rigor fiscal e monetário e do arrocho salarial que se mantém, quase invariavelmente, desde 1982.
E o que deixou de positivo o crescimento econômico acelerado vivido pela Espanha entre 1986 e 1990? Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que ele foi obra, sobretudo, do "efeito-entrada" no Mercado Comum Europeu e da consequente explosão do investimento externo. Entre 1986 e 1990, entraram na Espanha dez bilhões de pesetas, dez vezes mais do que no quinquênio anterior. Mas 30% desse total foi aplicado na compra de empresas locais; 58% em investimentos de carteira em ações, obrigações e dívida pública em Bolsa; e o restante foi destinado basicamente à compra de imóveis. Dados que refletem o caráter especulativo que assumiu e manteve boa parte desse fluxo de capitais.
Esse processo revalorizou os ativos reais e financeiros, aumentou a riqueza pessoal de seus detentores e multiplicou o preço das habitações urbanas, mas pouco alimentou as atividades capazes de gerar um progresso econômico duradouro e estável. E isso, em grande medida, porque o social-liberalismo de Gonzales rejeitou terminantemente qualquer tipo de política industrial.
Aliás, nesse período foi o país europeu que, depois de Luxemburgo, menos gastou em formação de recursos humanos, algo em torno de 0,08% do seu PIB, ao mesmo tempo que seu investimento em P&D não ultrapassava a média de 0,68% do PIB, taxa só mais alta que a de Portugal. De tal maneira que pode-se afirmar que foi de fato o mercado que promoveu a mudança estrutural na economia, mas num sentido oposto ao que anunciara o socioliberalismo teórico e ao que alardeou o marketing da "reestruturação industrial".
Os números mostram que a Espanha deixou de ser uma economia industrial: durante este período, e aceleradamente, nos anos 80/90, a participação industrial no PIB espanhol caiu de 32,9% para 24,2%, empregando apenas 27% da PEA (população economicamente ativa), enquanto a participação dos serviços cresceu de 47% para 63%, empregando hoje cerca de 60% daquela população.
E a indústria que restou divide-se, como em experiências análogas e posteriores, entre pequenas e médias empresas, responsáveis por cerca de 90% do produto industrial, e um núcleo dinâmico de multinacionais, responsáveis pela maior parte das exportações.
Segundo os dados publicados pelo "The Economist", em outubro de 1994, a Espanha foi o país da OCDE que mais vendeu empresas a estrangeiros no período 89-93, pois, conforme a economia foi se abrindo, os capitais espanhóis migraram para o setor dos serviços. Essas mudanças deram maior competitividade internacional à economia espanhola? Aparentemente não, pois, segundo o World Economic Forum, a Espanha situa-se hoje entre as nações menos competitivas da OCDE.
Na verdade, o mínimo que se pode dizer da obra do governo Gonzalez, com relação à questão da reestruturação produtiva e da competitividade, é que "a economia espanhola teve uma transformação industrial inacabada, que tem sido desincentivada pelo esquema de estímulos econômicos que potencializaram a busca de rendas mais rápidas e cômodas no mercado protegido dos serviços, ou na especulação com o patrimônio, em detrimento da produção para os arriscados e competitivos mercados industriais do mundo" (C.M. Cidad, El País, 1991).
O problema que os socioliberais não conseguem ver, nem enfrentar, é que exatamente esse esquema, que vem provocando a desindustrialização da Espanha, sem a conquista de uma maior competitividade, é parte essencial da estratégia de estabilização que foi adotada pelo governo de Gonzales.
Já não há muito segredo nesse círculo vicioso. Mas a Espanha foi pioneira e continua prisioneira, há mais de uma década, dessa "armadilha ortodoxa". O que o social-liberalismo espanhol deixa como ensinamento aos nossos tucanos é que, nessa estratégia, a desinflação não chega jamais aos patamares capazes de deter a desindustrialização e a desnacionalização. E que o duplo ajuste microeconômico, com "racionalização" do trabalho, ocorrido nos primeiros anos das décadas de 80 e 90, foi incapaz de dar maior competitividade internacional a uma economia bloqueada pelas altas taxas de juros e pela sobrevalorização cambial.
6 - Pois bem, se esse foi o resultado econômico do "socioliberalismo real", o que se pode dizer de sua face social? Também aqui os dados são eloquentes. Em 12 anos de "felipismo", o gasto social do governo subiu de 19,42% para 21,37% do PIB, um aumento reduzidíssimo e que mantém a Espanha entre as piores posições da OCDE. Com relação a sua distribuição de renda, os 10% das famílias mais pobres subiu seu quinhão, que era de 2,41% em 1980, para 2,85% em 1992, e os 10% de mais alta renda baixaram, no mesmo período, de 29,23% para 28,01%.
Em compensação a participação salarial no PIB caiu de 51,2% em 1980 para 46,1% em 1991, e a taxa de desemprego, que girava em torno dos 6% na época de Moncloa, e dos 15% no início do primeiro governo Gonzalez, hoje atinge a cifra astronômica de 24% da PEA adulta, chegando a inimagináveis 37,9% entre os jovens com menos de 25 anos de idade. Sendo que, com relação aos mais velhos, entre 30 e 54 anos, 800 mil dos 3,4 milhões de desocupados nessa faixa de idade permanecem analfabetos ou possuem escassa formação, o que lhes dá pouquíssima possibilidade de ocupar os empregos oferecidos no setor "reestruturado" da economia.
Com relação à juventude, as perspectivas são verdadeiramente catastróficas, não sendo de estranhar a disseminação da indiferença e da violência, na forma do que o jornalista Joaquín Estafanía chamou, em artigo recente, de "fascismo dulce". Para completar o retrato social do "milagre espanhol", haveria que relembrar que, a partir de 1992, o Plano Econômico de Convergência, desenhado com vistas ao cumprimento dos acordos de Maastrich, colocou no primeiro plano do debate político espanhol a "desuniversalização" da seguridade social. Nova situação que fez um alto membro do PSOE afirmar recentemente, que "a Espanha começou a voltar sem nunca ter ido".
7 - Por fim, o que dizer, pelo menos, da nova democracia espanhola? Que foi sem dúvida a obra maior de Moncloa. Mas, com relação às esperanças de um socialismo democrático, associadas inicialmente à ascenção de Gonzalez, soam decepcionantes as palavras do escritor espanhol Manuel Vázquez Montalban, de 1993: "O que distinguiu o felipismo, com respeito a outras maquiagens da social-democracia neoliberal, foi sua determinação implacável na hora de destruir referentes culturais da esquerda –e não apenas seus lugares-comuns. Tanto Felipe em pessoa, como seus intelectuais orgânicos individuais e coletivos, fizeram especial empenho em desacreditar a possibilidade de repensar a função do socialismo democrático." ( "Le Monde Diplomatique', 02/93).
Além disso, as regras eleitorais e parlamentares, definidas em nome da governabilidade, acabaram permitindo que Gonzalez, através de seu controle majoritário do Congresso, praticamente eliminasse a separação clássica entre os três poderes. Como resultado "a primeira instituição afetada foi o próprio Parlamento, dando lugar ao que ao longo desta década se vem denunciando como um dos fatos mais graves do sistema político: a dissolução do órgão que representa a soberania popular e seu distanciamento dos sentimentos e preocupações do homem comum". E isso porque "o situacionismo da maioria parlamentar socialista fez com que o Parlamento inteiro atuasse como um apêndice do governo, fruto do sectarismo governamental da maioria socialista" ( El País, 1992).
Nada disto, entretanto, impediu que também a Espanha entrasse, na década de 90, no rol dos países comprometidos pelos casos de corrupção, que se multiplicam no governo de Gonzalez. Com a originalidade de que seus dois principais casos de corrupção tenham envolvido os ocupantes do que se poderia chamar de cargos essenciais de um "estado mínimo". Um, Luis Roldan, foi diretor geral da Guarda Civil espanhola durante quase toda a gestão de Gonzales. E o outro, Mariano Rubio, foi quem, durante muitos anos instalado na Presidência do Banco de Espanha, denunciou o que considerava como os eventuais desvios monetários, fiscais ou salariais de um governo, para ele, muito pouco ortodoxo.
8 - Mas pelo menos a Espanha não se transformou, com Gonzales, na nova capital cultural européia? Lamentavelmente não. O boom cultural espanhol durou o tempo de preparação de quatro grandes acontecimentos de dimensão mundial: as Olimpíadas de Barcelona, a Feira Industrial de Sevilha, Madrid Capital Cultural da Europa e o Quinto Centenário, todos em 1992, mas com um efeito dinamizador que ocupou toda a segunda metade dos anos 80.
Depois disso, os recursos privados se deslocaram para outros lugares e a Espanha voltou ao ritmo natural, com seu patrimônio histórico riquíssimo, sua literatura, sua pintura etc. Mas o grande espetáculo (concertos, óperas e exposições de vanguarda) acabou. E Jorge Semprún, o ministro da Cultura escolhido para dar um brilho de esquerda ao governo, voltou para casa, de onde escreve sobre a corrupção no PSOE e a traição de Gonzales a seus ideais reformistas.
9 - Num balanço sintético do que foram os fatos, e não o marketing espanhol, pode-se dizer que a trajetória de Gonzales foi rigorosamente linear: em 15 anos, caminhou do socialismo para a social-democracia e daí para o que poderíamos chamar de social-liberalismo real, indistinguível, do ponto de vista de suas políticas e consequências, do neoliberalismo de Thatcher.
Até aqui, do ponto de vista de sua estratégia pessoal de poder, FHC tem se mostrado um discípulo aplicado e rigoroso de Felipe Gonzalez. Antecipou-se apenas num ponto: desde o início está aliado com a direita. Caso se mantenha por esse caminho, pode prever-se, por exemplo, que, depois de formar sua maioria no Congresso Nacional, deverá começar a discreta batalha para estender sua permanência à testa do governo.
Como também pode prever-se, com toda segurança, que procurará cooptar o espaço intelectual, seduzindo ou boicotando a formação de núcleos de pensamento crítico e alternativo; e não será um discípulo fiel se não usar as peripécias da política externa para manter sua imagem independente dos percalços da política econômica.
Nesse ponto, entretanto, seria bom para o país que Fernando Henrique Cardoso conseguisse maquiar um pouco sua visão felipista do mundo. Caso contrário, na hora em que deixar o governo e consultar então seu próprio espelho, é bem provável que se depare não com a imagem invertida de um novo Vargas, como gostaria, mas apenas uma caricatura do argentino Martinez de Hoz.

Nota
Os dados socioeconômicos contidos nesse artigo, foram reunidos por Lucas Grassi, economista da IRELA (Instituto de Relaciones Europeo-Latinoamericanas, sediado em Madrid)

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