São Paulo, domingo, 8 de janeiro de 1995
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Bioética é tão importante quanto aptidão científica

ELIANE S. AZEVÊDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na interface com a prática médica, a bioética adverte que a medicina não pode ser reduzida aos parâmetros de uma simples ciência natural. A responsabilidade de curar e de assistir não pode ficar na dependência de resultados de exames de sangue ou de outros dados de ordem científica, por mais informativos que sejam do estado de função do organismo.
Tão importante quanto o estado sanguíneo, sorológico, radiológico etc, para fins de diagnóstico, prognóstico e tratamento, é o estado de valores do paciente. Leucograma, hemograma, eletrocardiograma etc., têm, para o paciente, importância interdependente de seu axiograma, ou seja, do conjunto de valores que aprecia e adota.
Por outro lado, o estado de valores do médico é também tão importante quanto sua capacidade técnica e científica. Em qualquer situação, o estado de valores do médico é o arcabouço do seu próprio ser em cujas entranhas processam-se pensamentos e decisões.
Atualmente, quando as discussões sobre Q.I. e raça voltam a invadir o cotidiano das pessoas, é oportuno que se procure trazer para a ciência a mesma advertência que a bioética faz para a medicina.
O estado de valores ou axiograma do pesquisador é tão importante para a qualidade da ciência que produz quanto a sua titulação, competência metodológica e capacitação técnica.
A ciência em seus estatutos, seus métodos, sua comunidade vigilante etc. é ineficaz na preservação de uma boa produção científica se o estado de valores de cientista tem fortes aderências ao tema em estudo.
Assim, determinados temas estão tão intimamente ligados aos valores culturais das pessoas que exigiriam um exorcismo cultural do pesquisador para evitar que sua natureza humana não modelasse seu desempenho científico.
E como a ciência não pode livrar-se do estado de valores do cientista sem livrar-se do próprio cientista, a única forma de prevenção é reconhecer que temas de obcecante aderência cultural tornam-se inapropriados à investigação científica.
Os exemplos existem. Até mesmo de pesquisadores que chegaram a construir reputação e respeito pela qualidade científica do seu trabalho, mas que se atiraram à fraude científica quando passaram a pesquisar temas de forte aderência cultural a valores pessoais. O exemplo que cito é do cientista, psicólogo e analista estatístico Cyril Lodowic Burt.
Nascido em 3 de março de 1883 e falecido em 10 de outubro de 1971, Burt foi líder em psicologia educacional na Inglaterra, principalmente na área de desenvolvimento da criança. Em 1913 tornou-se o primeiro psicólogo a ser indicado para um alto cargo de educação no país. Nesse cargo, Burt adaptou o teste de Binet para uso na Inglaterra e apaixonou-se pelo estudo da inteligência.
Durante duas décadas publicou resultados de pesquisa desenvolvida por ele próprio e seus colaboradores usando como objeto de pesquisa uma enorme série de gêmeos. Vale ressaltar que gêmeos constituem material raro e precioso para estudos de herdabilidade de caracteres, pois os monozigóticos têm a mesma constituição genética e, se criados em ambientes diferentes, oferecem (assegurados os bons princípios de métodos e técnicas da investigação científica), oportunidade ímpar para acessar contribuições genéticas e ambientais para grande número de variáveis, inclusive Q.I., segundo opinião de muitos.
Estudando a referida série de gêmeos Burt trabalhou com análise fatorial e análise de variância as quais conferiram mais cientificidade e credibilidade aos seus resultados. Acreditava que inteligência era uma característica essencialmente genética e teria demonstrado, com seus estudos em gêmeos, que Q.I. era 80% herdado. Seus trabalhos tiveram forte influência não apenas em outros pesquisadores, inclusive americanos, mas também no sistema educacional inglês.
Na década de 80, um professor de Princeton, Leon Kamin, e um jornalista do Times, Oliver Gillie, foram rever os dados de pesquisa de Burt e descobriram que o grande pesquisador Cyril Ludowic Burt havia inventado os dados sobre hereditariedade da inteligência... a série de gêmeos que estudara, nunca existira, fora inventada... e inventados também foram os nomes de outros pesquisadores que citou como colaboradores.
Burt chegou a ponto de expor sua reputação de pesquisador, educador e psicólogo porque o tema em estudo atingiu o seu estado de valores de forma mais forte que a importância de pesquisador e educador que se autoconferia.
Burt permitiu-se cometer fraude científica a fim de convencer a todos que Q.I. é 80% herdado porque no seu mundo interior o fato da inteligência ser mais genética que ambiental era um valor fundamental.
A espécie humana se autodenominou de espécie superior por conta de seu atributo inteligência. Todavia, hoje, final do século 20, a inteligência persiste sendo uma qualidade muito mais idolatrada e desejada que compreendida. Os progressos científicos da modernidade avançaram no domínio da reprodução humana e da manipulação do DNA mas progrediram, proporcionalmente, pouco no entendimento do sistema nervoso central e menos ainda no da inteligência.
Não obstante a falta de conhecimento sobre o que é comumente chamado de inteligência, a humanidade presenciou uma corrida em busca da medida do Q.I. Passou-se a admitir que o que o teste de Q.I. mede é o que deve ser considerado inteligência. Reduziu-se, assim, a infinita amplitude da inteligência da espécie às limitações de um teste monocultural. Prevaleceu o desejo de apropriação de uma medida da inteligência e, principalmente, o desejo de estabelecer comparações.
Comparações da média de Q.I. entre grupos, povos e principalmente, raças. E aí o estado de valores dos pesquisadores transcende as conclusões teóricas e, finalmente, revela-se sem disfarces nas recomendações de menores investimentos em educação para negros.
Que a fraude de Burt, pesquisas, livros (como A Curva do Sino), artigos, etc. que tratam de Q.I. e genética, e, principalmente, de Q.I. e raça, sejam lidos com a cautela e mesmo o descrédito que merecem pesquisadores, escritores e articulistas quando tratam de temas que se entrelaçam com sua própria historicidade e, consequentemente, com seus valores culturais maiores.

ELIANE S.AZEVÊDO, médica, é doutora em genética, pesquisadora do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e ex-reitora da UFBA (Universidade Federal da Bahia).

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