São Paulo, domingo, 8 de janeiro de 1995
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Histórias de infância

COSETTE ALVES

Mentiras: "Eu mentia que era uma loucura, mas a minha mentira era uma mentira de sonhos. Eu ia entregar roupa –minha mãe lavava para fora–, aí eu pegava os livros, as enciclopédias abandonadas nas lixeiras nas portas das casas, colocava embaixo do braço e dizia: 'Estou indo para o ginásio'. As pessoas me perguntavam o que eu estava lendo e eu saía toda prosa. Eu mentia, era o sonho, era o desejo de estudar."
Solidariedade: "A outra coisa também que era legal em mim era a solidariedade. Eu dividia tudo o que tinha, aprendi com a mamãe. Ela era muito solidária. E tinham umas coisas impressionantes na mamãe. Ela era parteira e os maridos abandonavam as mulheres lá na comunidade, grávidas. Batiam na porta da mamãe. Ela olhava a mulher que não tinha o que comer. Ia para casa, pegava da gente um pouquinho de cada coisa e levava. Papai dizia, mas a gente não tem para dividir. Aprendi com minha mãe essa solidariedade."
Nega maluca: "Eu era uma menina que, por conta do pouco recurso que tinha, ganhava aquela roupa de adulto e botava. Mas eu ficava furiosa, porque me chamavam de maria mijona. Há uma diferença nas trancinhas que uso hoje, como uma consciência do cabelo, e como essa coisa era encarada lá atrás, altamente racista e preconceituosa. Eu era a neguinha do cabelo duro, era nega maluca, isso abalou a minha identidade. Quando eu a resgatei, percebi que não era responsável por minha pobreza, mas por minha luta. Tinha 7 anos."
Grande susto: "Vou publicar um livro sobre minha vida e tem uma coisa que eu deixei só para o livro. Mas vou contar para você. Eu tinha 8 anos. Estava na terceira série. A minha pobreza era tão grande que a gente não podia comprar roupa, comida você ganhava. Eu não tinha calcinha. Eu me lembro que peguei um pedaço de um saco qualquer e fiz como fralda, amarrei de um lado, amarrei do outro e fui para a escola. Mas eu não fiz direito, e na hora do Hino Nacional, aquele nózinho desatou e aquilo começou a descer, num momento em que ninguém podia se mexer. Olha, eu suava por todos os poros. Eu em pé cantando o Hino, a filha de um soldado cantando, e aquilo não terminava. Fiz um gesto rápido. Abri a perna, aquilo caiu e eu peguei aquele trapinho com a mão. Mas um menino viu –ele era danado. Virou uma briga eterna na escola. Ele não sabia o que era, mas acho que percebeu alguma coisa, pois ficou com aquela história: sua calça caiu, sua mãe não viu. Agora é engraçado, mas eu sofri tanto. Foi terrível.

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