São Paulo, quarta-feira, 11 de janeiro de 1995
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Transparência é preciso

PAULO SÉRGIO PINHEIRO

A gramática dos direitos humanos começou a ser levada em conta pelos governos brasileiros depois de 1985. Nesse ano, o governo civil subscreveu os tratados aos quais os governos militares, para terem as mãos livres, não haviam aderido –entre eles, a Convenção Americana e os dois Pactos de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Essas normas, após a Constituição de 1988 e os processos de ratificação pelo Congresso concluídos em 1992, tornaram-se válidas para o direito interno no Brasil. O governo brasileiro passou a defender a transparência em relação às violações de direitos humanos e tem aceito como normal o monitoramento que visa a superação dos obstáculos institucionais e estruturais para a plena realização do império da lei. O Brasil está hoje na plena legalidade internacional da proteção dos direitos humanos.
Em maio de 1993, realiza-se a primeira reunião oficial na história do Ministério das Relações Exteriores com organizações não-governamentais de direitos humanos. O então chanceler Fernando Henrique Cardoso e diplomatas discutem no Itamaraty com representantes de 30 entidades a pauta da Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena (Áustria), em junho de 1993.
Não consta que essa orientação tenha mudado. O presidente Fernando Henrique Cardoso há pouco reafirmou com clareza a temática dos direitos humanos. O chanceler Luiz Felipe Lampreia, em seu discurso de posse, ressaltou a importância da "proteção internacional dos direitos humanos" e "do diálogo construtivo com os organismos internacionais e organizações não-governamentais", mostrando que "nosso patrimônio diplomático está se enriquecendo com o exercício do diálogo com a sociedade civil".
Presidente e chanceler parecem reconhecer que, apesar da "responsabilidade primordial pela adoção das normas corresponder aos Estados", como se lembrou em Viena, os movimentos da sociedade civil têm um papel decisivo para que os direitos humanos (civis e políticos ou econômicos e sociais) se tornem realidade.
As entidades de direitos humanos realizam a "mobilização da vergonha" dos Estados e das sociedades: denunciam violações, pressionam por padrões universais, lutam contra a impunidade, exigem reformas. Enfim, fazem o que fazemos há 20 anos.
Ora, entidades não-governamentais nacionais e internacionais, como a "Human Rights Watch/Americas" (antiga Americas Watch) e a Anistia Internacional têm feito o mesmo, inclusive nos países de Primeiro Mundo.
Depois da Declaração e Programa de Ação de Viena (redigida por um comitê presidido pelo Brasil), em 25 de junho de 1993, não se pode mais alegar que essas entidades fazem o papel de colonizadores, como afirma o embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima ("Responder é preciso", Folha, 9/01/95). Pela simples razão de que a universalidade dos direitos humanos foi reconhecida por todos os Estados, da China ao Irã.
É cansativa falácia afirmar que aquelas entidades visam impor valores de colonizadores aos países em desenvolvimento, como se em cada país se pudesse torturar e desaparecer pessoas em paz em nome de uma (falsa) especificidade cultural que não vale mais para o arbítrio.
Foi graças à luta da Anistia Internacional contra os desaparecidos políticos, pela defesa da integridade física dos dissidentes em todas as ditaduras, entre elas a brasileira de 1964 a 1985, que muitos cidadãos aqui e no mundo sobreviveram à violência ilegal. Hoje, alguns estão até no governo. Temos um débito enorme com a Anistia, sob a ditadura e, hoje, na democracia.
A melhor resposta às denúncias é demonstrar o empenho do Estado brasileiro e da sociedade em tornar realidade a proteção dos direitos humanos na sociedade brasileira. A "Freedom House" não cometeu um crime de lesa-majestade contra o Brasil ao revelar que "o processo político e o sistema judicial estão maculados por altos níveis de corrupção e/ou pelos cartéis da droga", nem uma seção da Anistia revelou um segredo de Polichinelo ao verberar práticas de "faxina social" contra crianças de rua, prostitutas e homossexuais, documentadas por inquéritos policiais e processos judiciais até na esfera federal. E analisadas pelo próprio relatório do governo brasileiro relativo ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, entregue à Organização das Nações Unidas no ano passado.
Um país que reconhece as graves violações de direitos humanos, e não se omite, pode enfrentar olho no olho as grandes democracias e as entidades de direitos humanos sem bravatas patrioteiras. É graças à superação da política de dissimulação que o Brasil tem hoje um papel respeitado.
É evidente que o sistema de notas ou classificações de países da "Freedom House" (que as outras duas entidades não adotam) é precário e deixa de lado especificidades. Mas a "Human Rights Watch/Americas", no último relatório sobre o Brasil, e a Anistia Internacional, no texto "Além da Desesperança. Um programa para os Direitos Humanos no Brasil", não se cansam de reconhecer os avanços e os esforços que os governos democráticos e a sociedade civil têm feito para os direitos humanos tornarem-se realidade no Brasil.
A democracia brasileira, graças à política de transparência, pode exigir nos organismos multilaterais e dos outros países o respeito aos direitos humanos que nos cobram. A luta contra a pena de morte, a tortura, o racismo, a discriminação, causas de "Human Rights Watch" e da Anistia Internacional, são as causas do governo democrático no Brasil, são as nossas causas.
Somos todos donos da verdade dos direitos humanos que queremos realizados aqui e em todo o mundo.

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