São Paulo, quarta-feira, 11 de janeiro de 1995
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Estabilidade e temperatura cívica

CANDIDO MENDES

Por que não voltamos às ruas ao desfechar-se a absolvição de Collor pelo Supremo Tribunal Federal? Foi a atmosfera da natalina e a modorra das boas festas, ou o efeito de um emperro mais fundo, de novo momento da cultura cívica brasileira? Estamos ou não descobrindo um impacto, ainda mal pressentido, da profunda alquimia das estabilizações econômicas sobre as temperaturas de nossa indignação cívica?
Vivemos, desde o impeachment de Collor, etapa de nossa vida política ligada ao gatilho da mobilização. A democracia enraizava-se no solo mais fundo, do permeio da política pela ética. Cravava-se na certeza do sentimento uníssono do que podem os movimentos populares, despertados por um sentimento primordial de justiça e de inconformidade com o abuso político.
O fim de 1994, na recuperação do descalabro econômico-financeiro, parece ao mesmo tempo prescindir desse estado de consciência nacional, em que a ética mediaria a articulação natural entre o bom senso e a lei. E o que talvez desapareça, no Brasil menos vigilante, e certamente desmobilizado, refeito do susto de um ganho petista e com a sensação de volta à normalidade política, visto até como uma "desintoxicação" cívica.
Defrontamos esse novo paradoxo do funcionamento das instituições tranquilizadas, absorvendo o choque mais radical entre a vigência da lei e da justiça. Ou o do "sumum jus, summa injuria". Não registramos, com efeito, neste diapasão, leituras desencontradas, do que falte na lei, para condenar Collor, ou do que, ao contrário, não poupou o senador Humberto Lucena e suas folhinhas da inelegibilidade.
A exasperação da letra da lei provoca a torna de um bom senso bruto, descartado da ética, fiel a um apelo instintivo aos usos e costumes políticos. A anistia de Humberto Lucena tem tudo de acintoso ao formalismo ao Estado de Direito, mas é recebido como um alívio ao jogo dos contrastes disparatados desta condenação frente à impunidade final de Fernando Collor.
Ficou-nos, como saldo dos movimentos populares do último biênio, a esperança de um avanço da cultura cívica, como penetração do bom senso por uma consciência coletiva mais exigente. Nos momentos de crise, a mobilização social, à flor do processo garante-nos esta consonância. Mas nas etapas de desafogo, o realismo político prevalece sobre a indignação, garantidora dos valores da transformação social.
No novo baixa-mar da estabilização avultam, desconexas, tanto a boa consciência legalista dos juízes do Supremo, quanto a frustração nova de Betinho, pedindo a comoção popular contra a absolvição do ex-presidente. Nossos tempos, agora, são de um sentimento de profunda ambiguidade nacional, nos prós e contras que movem a restauração do mandato de Humberto Lucena. O que entra em perda é o "estado de espírito" de fé permanente, no apelo a movimentos como o da "Ética na Política", como resultante decantada do aperfeiçoamento das instituições.
O paradoxo da estabilização lograda pelo Real é iniciar-se como uma desmobilização do sentimento participativo, que se transformara na costura política do país, devastado pelo binômio inflação/corrupção. Dele decorreu esse naipe tão rico de iniciativas entusiastas e diferenciadas, da luta contra a violência e a marginalidade, a do "impeachment" de Collor. O que temos hoje é uma nítida "operacionalização" da ética, de efeitos localizados e definidos, num corpo social que se restaura, e tem seus tempos e paciências diversos do roldão regenerador da sociedade.
Os movimentos sociais têm o seu recado para as favelas, onde a intervenção militar só guarnece o repreenchimento da vida comunitária. São indispensáveis as reformulações dos aparelhos assistenciais transformados em verdadeira sucata como o da LBA (Fundação Legião Brasileira de Assistência), para o encontro de uma legítima política de promoção coletiva. E só o sentimento ético fundamental pode extirpar o corporativismo do nosso Estado de bem-estar prematuro preso à concessão de vantagens sociais, à margem de uma legítima e democrática consciência participativa.
O novo governo se inicia emudecendo o último clamor insólito de Itamar, pelo salário mínimo de R$ 100, como reivindicação de um ethos social solto, por sobre os imperativos do sistema ou o que permitam seus mecanismos, ajustados à estabilização salvadora da República.
Nos movimentos sociais que porventura hoje se organizem, lavrará a consciência de que só metabolizadas impactarão o regime. Terão guarida no "quantum satis", que ensejem as regras da produtividade, da "qualidade total", ou das visões de mão única da eficiência ou, sobretudo, das novas leituras para a insatisfação social.
Os próximos anos não verão o reforço da luta pelo Estado de Direito ao empenho contra a miséria e a marginalização coletiva, como um aríete único, dos impulsos da ética transformadora, que parecia ser o legado do "povo na praça", ou dos "cara-pintadas".
Qualquer que seja o futuro do real, o seu primeiro resultado aí está. O reformismo pode trabalhar sem susto no ajuste e reajuste de suas exigências sociais. Dispõe de todos os controles de temperatura para a mais importante das climatizações: a que não permita a ética suar por todos os poros, para dar conta de nossa impaciência por uma sociedade mais justa.

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