São Paulo, quinta-feira, 12 de janeiro de 1995
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'Eu dou muito valor ao que é brasileiro'

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

O diretor, na entrevista iniciada à pág. 5-1, segue falando de Ney Latorraca e do teatro brasileiro.
Gerald Thomas - Particularmente, eu acho "Irma Vap" um primor. Eu levei a Marília (Pêra) para ver "Irma Vap" em Nova York e posso dizer que a montagem dela, do (Marco) Nanini e do Ney é muito melhor. É mais engraçada, mais sucinta, mais rápida.
Eu dou muito valor ao que é brasileiro. Eu enalteço sim o que é nativo daqui. É o que eu falo da Regina Casé. Ela inventou uma forma de fazer teatro, na medida em que torna dela mesma toda a incompreensão que o brasileiro tem do mundo exterior. Quando faz fragmentos de tragédia grega no "Nardja Zulpério", ela inclui toda uma impossibilidade de visão que um brasileiro tem da cultura antiga. Isso é que é importante.
É por isso que eu acho que Ney Latorraca, ela, essas pessoas têm que voltar a figurar como mais importantes do que eu, do que Antunes (Filho), do que Zé Celso. São pessoas que dão uma identidade muito maior ao teatro brasileiro do que qualquer um dos diretores que fantasiam, que decoram o teatro com ornamentos brasileirísticos. Esses são os brasileiros.
Folha - É engraçado você, Gerald Thomas, falando isso.
Thomas - Mas é o resultado... A gente vive, acumula e recicla. Eu fui ver "Nardja Zulpério" duas vezes porque entendo que é o resultado empírico de 20 anos de teatro e que só pode parecer trivial porque o Brasil se cansa rapidamente, a nata intelectual se cansa rapidamente de ter descoberto uma coisa nova e negligencia o que é fruto direto da cultura.
Só não passaram por cima do Caetano (Veloso) ainda porque realmente não apareceu mais nada depois dele. Caetano é a maior coisa que já apareceu, de manifestação cultural, de todas as áreas, em qualquer cultura que eu conheça. Não é à toa que a Regina Casé é amiga pessoal do Caetano.
Folha - Ela lembra Oscarito, fazendo tragédia grega.
Thomas - E Dercy Gonçalves, e Costinha, todos os que assumem a incompreensão do mundo exterior. O mundo exterior, no Brasil, é um mito. Você sabe que em nenhuma língua se fala "lá fora"? Falam "overseas" (além mar), mas "lá fora" é estranhíssimo.
Folha - "Don Juan" é sobre um conquistador, um narcisista. Foi o que atraiu você?
Thomas - Olha, não sei, porque acabei de fazer o "Narciso" na Áustria e o assunto não sei se ele se esgotou. O que eu gosto, na idéia de fazer "Don Juan", é uma coisa que é maluca, de a gente ter uma necessidade absurda de possuir pessoas. Quer dizer, um homem a mulheres, um homem a outros homens, ou uma mulher a homens, enfim, não vamos entrar no lado homossexual da coisa, mas essa loucura que eu relaciono mais a uma idéia "fágica", vamos dizer, modernista. A gente conquista uma pessoa, acaba de trepar com ela e já foi, aquilo já foi.
Então, essa mistificação maluca de que existe a mulher ideal, que vai ser tudo para você, e ela sempre reside no corpo de uma mulher que não é aquela com a qual você está, isso eu sempre achei muito engraçado. É a coisa contra a qual eu luto o tempo todo, em cada relação que eu me fixo, em que ache que "agora estou casado"...
Folha - Para todo o sempre.
Thomas - É, é. Eu tento todo dia me educar, ver as qualidades que via na época do namoro impossível e desmistificar um pouco a nova pessoa que, numa esquina, em três segundos, você vê e ela vira tudo para você. Uma pessoa que você nem sabe o nome.
Isso é o que me atrai mais no "Don Juan", o paralelo entre essa loucura e a maneira como a gente aprendeu a viver, que é o mundo moderno. É o que me interessa, mais do que o narcisismo.
Folha - Na sua história como diretor, os trabalhos espelham a ligação às mulheres com quem você esteve, na época. Isso tem relação com sua visão da peça?
Thomas - Não, porque "Don Juan" não é uma peça minha.
Folha - Mas foi uma peça que você mesmo escolheu fazer.
Thomas - É, mas se o Otavio (Frias Filho) tivesse escrito uma peça sobre arquitetura, eu também me interessaria em fazer. Eu estou há muito tempo nisso que você chama de meu teatro, quer dizer, peças em que eu assino da luz até o calcanhar, e estava interessado em fazer a peça de um autor. E me interessa um autor que esteja no meio do fogo cruzado do sistema.
Por acaso, um autor com o qual eu não concordo esteticamente, poeticamente. Enquanto eu me encanto, vamos dizer, por artistas da pincelada, da formalidade, do Haroldo de Campos, do Caetano, o Otavio é mais Harold Pinter, coisas que considero incapazes de traduzir o mundo contemporâneo. Mas me interessa pegar um texto de alguém que não está na mesma sintonia que eu e dirigir. É o diálogo da fricção. O Otavio já teve críticas severas, sempre com muito respeito, é evidente, mas já teve críticas severas à minha forma de pensar o palco e eu à dele. Então, acho que é uma fricção saudável.
Folha - Uma contradição.
Thomas - Exato, contradição que cabe na mistura e é saudável.
Folha - É lendária a guerra que se estabelece entre o diretor e o autor vivo. Como é que está sendo, em "Don Juan"?
Thomas - Eu achei até que ia virar briga. Umas três semanas atrás, uma parte da peça estava se provando infactível no palco. Aí eu chamei o Otavio, pedi para ele ver um ensaio, ele viu e concordou. Varamos a madrugada, fomos até as cinco da manhã conversando e ele ficou surpreso como, em vez de eu tentar arrastar a peça para o meu território –de que nada tem a menor importância, de fazer alusões a isso e aquilo... Ele ficou intrigado como eu estava com atenção para que o público entendesse por que tal personagem ia fazer isso na próxima cena. Aí ele foi para o Egito, reescreveu, mandou faxes diários para Nova York e agora estou com a segunda parte da peça reestruturada. É o que se chama de colaboração, no melhor sentido da palavra.

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