São Paulo, quinta-feira, 12 de janeiro de 1995
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Caubóis de Barretos cultivam a barriga

DAVID DREW ZINGG
EM BARRETOS

Esta cidade exerce um efeito muito saudável sobre meu sistema neurológico paulista e estressado.
Embora eu tenho acabado de passar pela 21ª comemoração do meu 50º aniversário, minha memória remonta à minúscula cidadezinha onde fui criado, no longínquo século 18. Barretos me lembra muito Nova Jersey.
Quando vou a Barretos eu sempre me dirijo direto ao Ivaí, um café na esquina da praça Francisco Barreto com avenida 19.
Quando tio Dave reflete sobre esse endereço, várias coisas vêm à sua mente. Começo a me perguntar o que terá acontecido ao "s" no final de Francisco Barreto. Será que um plaqueiro descuidado deixou cair no chão? Ou será que não foi usado porque o pessoal daqui, como no norte do Brasil, transforma todos os plurais em singular? Ou, bem mais provável, será que houve mais do que um Barreto?
Quem sabe houve dois Barretos que se encontraram um belo dia no século passado, suando sob o Sol quente do interior paulista, e resolveram dar a este belo lugar um nome coletivo?
Este é o tipo de reflexão que toma conta do que sobrou de minhas células cerebrais quando chego a esta cidade cheia de classe.
O Ivaí é o centro de informações da estrutura social extremamente complexa de Barretos. Quando digo "social", não estou usando a palavra em seu sentido Morumbi. Eu me refiro ao uso da palavra que se encontra no dicionário. Esse bar de esquina poderia oferecer algumas aulas de coleta de informações àqueles idiotas do velho SNI na capital da nação.
O motivo ostensivo de se dar uma passada no Ivaí é tomar um cafezinho –muitíssimo bem preparado, diga-se de passagem, por uma senhora simpática que te pergunta se você o quer "forte ou fraquinho?"
Mas a verdadeira razão pela qual se visita o Ivaí é para coletar informações atualizadas, vitais para a sobrevivência.
A intensidade da troca de informações pode ser observada à distância, mesmo por um estrangeiro de Sampa. Os frequentadores assíduos do Ivaí formam grupinhos apertados, em pé, como moscas trabalhando em cima de um peixe especialmente "maduro" que ficou para trás no fim da feira. Os encontros são caracterizados por um sigilo solene.
Um de seus participantes me explicou qual é a cola que mantêm unidas essas sessões diárias no Ivaí.
"Sabe o que é", ele me disse, "todo mundo em Barretos deve dinheiro a pelo menos metade das outras pessoas daqui. O Ivaí é a Bolsa de Valores de Barretos. A cotação de um homem pode subir ou cair, com base em sua jogada mais recente. Ele comprou outra fazenda? Quanto pagou? Ele fez um bom negócio ou foi levado no papo por um vendedor esperto? Para quem mora em Barretos, essas informações são tão importantes quanto a nomeação de um novo ministro em Brasília".
Uma das características do Ivaí é que você não vai encontrar muita gente jovem por lá. Seus frequentadores são cavalheiros sérios e mais velhos. Embora alguns deles pareçam conseguir enganar o processo de envelhecimento com bastante êxito, de modo geral as cabeças dos clientes estão em processo de transformar-se em plataformas de pouso de mosquitos.
Jovens fãs de bandas com nomes tipo Nerve Damage não são bem-vindos no Ivaí. A perda maciça de cabelos não é a tragédia que muitos homens de Barretos acreditam ser. Quem vem à mente, imediatamente, é o falecido Yul Brynner.
Outra característica fascinante da turma bem-informada que frequente o Ivaí é a... ahn... a... bem, a barriga. A maioria dos clientes do Ivaí possui a aparência arredondada de homens que temem que os suprimentos de alimentos, como os conhecemos atualmente, vão acabar na segunda-feira que vem, logo depois do almoço, e que portanto resolveram tomar uma atitude.
Alguns poucos caubóis –e não vejo razão para não os surrarmos à morte com paus– conseguem chegar à meia-idade com corpos magros e esbeltos. A maioria de nós (e isto inclui quase toda a gangue do Ivaí), quando chegamos aos 40 anos, já contemos grandes extensões de tecido gorduroso. Este memorial a tudo de bom que comemos em excesso durante nossas vidas inteiras nos divide em duas seções, com a divisão feita meio a meio. Num navio, elas seriam chamadas de popa e proa.
Os corpos do pessoal que frequenta o Ivaí estão convencidos de que na segunda-feira que vem, logo depois do almoço, vão precisar da gordura armazenada daquele churrasco que comeram quando estavam na segunda série.
A única pessoa esbelta e bem-conservada no Ivaí é Jair, o cavalheiro que toma conta da caixa. Jair é a reencarnação viva de Gary Cooper. Seu elegante chapéu preto foi cuidadosamente moldado à melhor moda gaúcha. Jair é o saudador não-oficial da cidade de Barretos, aquele que nos dá as boas-vindas.
A coisa que vem mantendo Jair magro e belo (em meio ao oceano de comida e bebida que constitui boa parte da vida diária em Barretos) é, sem dúvida, seu abundante estoque de contagiante bom humor.

Tradução de Clara Allain

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