São Paulo, quinta-feira, 12 de janeiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Produção de filmes resiste à idéia de crise

LÚCIA NAGIB
ENVIADA ESPECIAL A BOMBAIM

Começar o ano em que se festeja o primeiro século do cinema presenciando o 26º Festival Internacional de Cinema da Índia parece bastante apropriado.
Aqui, o cinema é decididamente um capítulo à parte na história. Trata-se de um caso de governo, ou mesmo de polícia –a julgar pelo enorme contingente de policiais que, na abertura do festival, anteontem, aguardavam os visitantes para revistá-los minuciosamente.
Os indianos parecem ter compreendido melhor do que qualquer um, inclusive os americanos, o alcance político que pode ter um filme.
Assim é que sua produção monumental –cerca de 700 títulos por ano–, que há décadas garante ao país o primeiro lugar mundial no setor, tem uma participação expressiva do dinheiro público.
Alcance
E, além do amplo mercado interno –que atinge quase totalidade da população ativa, inclusive os analfabetos, dentre os mais de 800 milhões de habitantes–, o cinema indiano conta com uma distribuição efetiva nos países do sul e sudeste asiático, e também no norte da África e no Oriente Médio, após passar no Cairo por uma dublagem em árabe.
Nestes locais, tem frequentemente maior box office do que o cinema americano (o que torna relativa a noção do imperialismo hollywoodiano mundial).
Em tal contexto, é natural que o festival também seja administrado pelo governo e que sua abertura tenha constituído, como todos os anos, um espetáculo oficial.

"Bollywood"
Em "Bollywood" (como é conhecida Bombaim, a "Hollywood da Índia"), as faixas do festival se sobrepõem a todas as outras publicidades, como uma palavra de ordem.
O catálogo do evento, cujo lema grandioso reza que "toda humanidade é uma família" ("vasudhaiva kutumbakam"), traz mensagens introdutórias do presidente da Índia, Shanker Dayal Sharma, e do primeiro-ministro, Narasimha Rao.
Na cerimônia de abertura, num estádio ao ar livre, com bandas de música, fogos de artifício e um público de nada menos que 5.000 pessoas, estavam presentes o governador do Estado de Maharashtra (onde fica Bombaim), Shri Sharad Pawar, e o ministro da Informação e das Comunicações, Shri Singh Deo, entre outros figurões.
Estrelas e política
Tão importantes quanto as autoridades eram os atores famosos ali homenageados, o veterano Padmashri Shivaji Ganesan e a bela Madhuri Dixit, que arracaram delirantes aplausos da platéia, ao acenderem a pira inaugural.
Não é de agora, aliás, que o cinema catapulta atores para a política na Índia, onde vários ministros e outros expoentes do governo fizeram carreira nas telas de cinema.
Multimídia artesanal
A imensa popularidade do cinema indiano, que não se deixou afetar significativamente sequer pelo advento da televisão, para além da manipulação eficaz de um veículo de massas, tem raízes culturais profundas.
Entrou para o folclore o caso de uma deusa inexistente nas religiões indianas, que passou a ser fervorosamente cultuada em vários templos quando o filme, para o qual foi inventada, alcançou sucesso.
Uma interpretação corrente para tal fenômeno é a de que o cinema teria dado fisionomia à espécie de conceito de "obra de arte total" que tem predominado na Índia em todos os tempos.
Regida pelo "dharma", termo sânscrito que significa a "lei da boa ordem do universo", a cultura indiana concebe as artes como um corpo coeso, no qual a música, a dança, a arquitetura, a pintura etc. se unem para elevar o espírito à totalidade cósmica.
Como imaginara Wagner para a ópera, o cinema para os indianos é, assim, a reunião necessária das artes, também em filmes estritamente comerciais e de entretenimento. É o que parece estar por trás da obra de cineasta indianos como Satyajti Ray (leia texto ao lado).
Nestes, a música e a dança são mais que características de gênero, constituindo elementos indispensáveis, mesmo quando alheios ao enredo (daí a aparência incongruente, para os ocidentais, de tantos filmes indianos).
É esse espírito que dá ao cinema indiano, extremamente pobre em termos tecnológicos, uma aparência de "multimídia artesanal", capaz de manter sua estabilidade mesmo quando no Ocidente o assunto é a crise do cinema.

Texto Anterior: Caubóis de Barretos cultivam a barriga
Próximo Texto: Tradições temáticas sobrevivem
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.