São Paulo, sexta-feira, 13 de janeiro de 1995
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Ang Lee leva 'Rei Lear' à cozinha

AMIR LABAKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Filme: Comer, Beber, Viver
Direção: Ang Lee
Elenco: Sihung Lung, Jia-Chien
Onde: Sala 2 do Espaço Banco Nacional e Arouche A

"Comer, Beber, Viver" abriu em clima de euforia a Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes do ano passado –uma das melhores mostras da história do evento. Nada mal para o apenas terceiro longa-metragem de um cineasta de Taiwan, Ang Lee, 40.
Antes, Lee, totalmente desconhecido, tinha levado (ex-aequo) o Urso de Ouro de Berlim 93 com uma simpática comédia de costumes gay, "O Banquete de Casamento", passada em Nova York.
O filme obteve sucesso planetário e consagrou o esquema de produção independente americano, capitaneado pela produtora Good Machine, à qual Lee se vincula.
Cannes 94 confirmou-lhe o status de cineasta da primeira linha. "Comer, Beber, Viver" não arrebatou mas tampouco decepcionou. É outra comédia de costumes, de feitura sóbria e ritmo cadenciado, desta vez totalmente desenvolvida em Taipei, capital de Taiwan, mas mantendo como referência os EUA e a cultura americana.
Não parece exagerado descobrir em "Comer, Beber, Viver" –assim como um filme-irmão de "A Festa de Babette", de Gabriel Axel, e "Tampopo", de Juzo Itami– uma variação livre e contemporânea do "Rei Lear" de Shakespeare. Ang Lee parte do mesmo núcleo familiar a beira da implosão da tragédia shakespereana.
O rei viúvo às vésperas da aposentadoria impera aqui apenas metaforicamente: trata-se do rei dos chefes da cozinha tradicional chinesa na Taipei atual.
Como Lear, o mestre Chu tem três filhas de caráter distinto. Duas, Jia-Jen, a mais velha, professora, cristã e solteirona, e Jia-Ning, a caçula, romântica e empregada numa lanchonete de fast-food, lhe são devotadas. A terceira, Jia-Chien, é a sua Cordélia, ambiciosa, temperamental e independente, executiva em ascensão de uma companhia aérea.
Não há no filme de Lee herança material a disputar. O legado em causa é eminentemente simbólico. "Comer, Beber, Viver" tematiza a tensão entre a tradição cultural chinesa e os padrões culturais do capitalismo avançado na Taiwan deste fim de século.
A arte culinária do venerado Chu é o baluarte da primeira. Cada uma das três filhas exercita a seu modo o impacto dos novos tempos. O cristianismo de Jia-Jen, os hambúrgueres de Jia-Ning e a ética profissional combinada com liberdade sexual de Jia-Chien sobrepõem-se sem dó à milenar cultura chinesa.
Definidos sem muita pressa os personagens e caracterizado este conflito cultural básico, Ang Lee cuida de exprimir sua visão otimista quanto à possibilidade de uma convivência entre tradição nacional e sociedade globalizada.
Passado e presente mesclam-se na formação das personalidades, sobretudo do par central de rivais, Chu e Jia-Chien. Nem o pai é tão careta, como confirma seu lema dionisíaco que serve de título ao filme, nem a filha corporifica a ruptura, como o passar do filme vem demonstrar.
O entrecho romântico, com pai e filhas em busca do par perfeito, frisa essa igualdade básica, para além do choque de culturas e do conflito de gerações. Sexo e comida fazem o mundo girar, diz Ang Lee, o resto é detalhe. Já Shakespeare não assinaria isso.

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