São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Real requer balanço de pagamento sólido

LUCIANO COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Discutimos em artigo anterior, nesta coluna, a natureza global dos fluxos de capitais para os chamados mercados emergentes.
Entre 1991 e 1993, os mercados de capitais dos países em desenvolvimento tornaram-se objeto de grande interesse dos investidores internacionais, em busca de altas taxas de retorno, numa conjuntura em que os juros eram muito baixos nas economias centrais.
Em visita ao Brasil, em 1993, o professor Hyman Minsky assinalou que vivíamos um momento de especulação em que o "dinheiro saia à caça de retornos elevados sem olhar para os riscos".
Mesmo países com desajuste macroeconômico e superinflação –como o nosso– receberam generosos ingressos de capitais.
Em 1994, este padrão foi sendo revertido com a subida da taxa de juros nos EUA, dado o temor de que o vigoroso crescimento da economia americana viesse a desatar pressões inflacionárias.
A alta dos juros já havia desacelerado os fluxos de capitais e os preços dos papéis dos mercados emergentes no primeiro semestre de 1994, colocando sob tensão os países com elevados déficits em conta corrente, dependentes de entradas maciças de capitais.
Os relatórios das instituições internacionais, como o FMI, já registravam o receio de que pudesse ocorrer um colapso.
Parece incrível que o governo mexicano, tido como exemplo de bom comportamento, tenha ficado passivo e inerte, sem preparar qualquer medida preventiva, limitando-se a reagir à subida dos juros nos EUA aumentando ainda mais as suas próprias que, antes da crise, já haviam alcançado o patamar médio de 35% ao ano, com uma inflação anual de 7%.
Não se trata só de falta de competência, mas de falta de instrumentos, dado que o Banco Central mexicano abdicou dos mecanismos de registro, controle e monitoramento sobre os fluxos cambiais, após ter abraçado fervorosamente o paradigma da liberalização e plena desregulamentação do mercado de câmbio.
Os fatos recentes sublinham a forte interligação dos mercados mundiais de capitais e finanças. São dezenas de milhares de investidores, com horizonte de curto prazo, buscando ganhos especulativos. Quando há um "estouro de boiada" é difícil deter o pânico e parar o efeito dominó.
Lembremo-nos da virulência da última crise monetária européia, que obrigou à desvalorização de várias moedas contra a vontade de governos e bancos centrais.
Nestes casos não adiantam demonstrações de voluntarismo, sem o firme suporte dos poderosos bancos centrais dos três grandes (EUA, Japão e Alemanha).
A Argentina, por exemplo, pode ser atropelada por uma forte evasão de capitais –não obstante a veemência do ministro Cavallo na defesa de sua posição.
Nesta eventualidade, ou admite uma explosiva desvalorização do peso ou, se quiser manter a regra legal da conversibilidade, terá que provocar uma brutal contração interna da moeda e do crédito, com pesadas consequências para o seu sistema financeiro e empresarial.
A crise mexicana, até o momento, está tendo efeitos desestabilizadores em todos os mercados emergentes. Ainda não se pode prever a duração e a violência dos seus desdobramentos, o que dependerá em parte do empenho e da habilidade das intervenções de coordenação sob a liderança do governo americano.
Mas ainda que a atuação direta do presidente Clinton consiga esfriar a crise, será inevitável a paralisação dos influxos de capitais ao longo de 1995, particularmente para a América Latina.
Ou seja, ainda que não enfrentemos um surto de evasão de capitais com substancial perda de reservas, tornou-se inexorável a reorientação de nossa política, daquilo que o ministro Pedro Malan denominou de "arranjo de política cambial e monetária".
A equipe econômica sabe que a atual configuração macroeconômica não é sustentável e dá sinais de que pretende modificá-la.
Mas, para ainda dispor de um considerável volume de divisas (as reservas caíram recentemente para cerca de US$ 38 bilhões) e por não querer mexer na política cambial num momento delicado, decidiu postergar as mudanças.
A hesitação em iniciar a correção gradual da defasagem cambial decorre de duas considerações.
1) Do receio de que se projetem efeitos inflacionários, num horizonte ainda não consolidado quanto às expectativas de inflação.
Pretende-se aproveitar o momento favorável da evolução dos preços para mostrar que a megera está domada e, ao mesmo tempo, avançar no "front" fiscal para fixar mais confiança nos ajustes econômicos. Um eventual movimento de ajuste da paridade cambial comprometeria esse curso.
2) Da apreensão de que uma sinalização de correção de taxa de câmbio possa antecipar as saídas financeiras, num momento ainda delicado para o balanço de pagamentos, em que não convém perder mais reservas de divisas.
Mas o fato de se dispor de algum tempo para operar a correção de rota do plano de estabilização não recomenda o imobilismo nem o recurso à contraproducente manutenção de juro elevado.
Uma demora excessiva na definição de um novo regime cambial também pode ser muito perigosa porque ensejaria um aprofundamento do déficit em transações correntes, acumularia mais defasagem cambial e resultaria em perda adicional de reservas.
As tentativas de compensar a defasagem da taxa de câmbio através da redução dos "custos sistêmicos" (incidência tributária, transportes, portos) são válidas e desejáveis pelo seu mérito intrínseco, mas não devem ser pretexto para deixar tudo como está.
É urgente, pois, amadurecer regras para um regime cambial equilibrado, compatível com uma retomada sustentável do desenvolvimento e o controle monetário.
Felizmente, existem várias alternativas de intervenção para induzir o desligamento da taxa de câmbio e o Banco Central do Brasil, além dos instrumentos, possui quadros técnicos competentes.
A escolha do "mix" mais adequado depende de uma avaliação abrangente dos impactos sobre a expansão da moeda e do crédito.
Dado que a preferência é por um regime mais flexível, não indexado, com uma banda de flutuação, a questão crucial é definir qual o nível ideal a ser almejado para a paridade real/dólar e a velocidade do processo de correção.
A intenção anterior da equipe econômica de admitir um déficit em transações correntes de US$ 9 bilhões em 1995 (superávit comercial de US$ 5 bilhões e déficit na conta serviços de US$ 14 bilhões) tornou-se temerária, pois implicaria perda considerável de reservas.
Portanto, o nível ideal para a taxa real de câmbio é aquele que produz um resultado sólido para o balanço de pagamentos, vale dizer, que tolera um déficit corrente de magnitude muito menor, financiável inteiramente por investimentos e/ou empréstimos externos estáveis, de longo prazo. Este nível de déficit é certamente inferior a 1% do PIB e a prudência o colocaria próximo a 0,5%.
Por conseguinte, continuará sendo necessário realizar um superávit comercial de pelo menos 2% do PIB (próximo a US$ 10 bilhões), o que não será difícil se o governo, além de facilitar as operações de ACC, sinalizar uma correção da defasagem cambial e aproveitar os ventos favoráveis da expansão da economia mundial.
Ainda que o ajuste gradual da taxa de câmbio implique no difícil desafio de fazê-lo de forma compatível com a estabilização (o impacto deflacionário da entrada da safra agrícola após março/abril ajuda a criar o espaço para tal), é inequívoco, hoje, que um balanço de pagamento sólido é condição necessária para sustentar uma moeda forte e estável.

Texto Anterior: Alta de serviços supera inflação
Próximo Texto: Renda fixa dá ganho maior
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.