São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 1995
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O lobo-criança

HORÁCIO COSTA
DA MEMÓRIA QUE FAREJA E ASSEDIA UMA CASA

e em meus ossos congela-se para roer-me os dias;
os caninos de leite em meu sono remoem-me

e rompem a fina epiderme da realidade
como se o corpo que conheço há mais de trinta anos,
aquilo que tenho por mim fosse uma brincadeira
como quando jogávamos bola ao pé de uma casa
levantada contra a canícula:

às três da tarde
os adultos dormiam a sesta; eu e meus primos
escondidos no porão entre arreios fumávamos
e aos mais jovens mostravam os maiores os membros,
seus grandes membros carnosos e intumescidos;
na penumbra, entre correais e arriatas, pelegos,
estribos e relhos, recendia um mundo a suor

Entre toque
e pudor e consumação nos imobilizávamos
até que os passos sobre o porão indicassem-nos
a mudança de inclinação da tarde, a retomada
Move-se dentro de mim o menino, debruça-se
à alba: uma paisagem descobre como se uma estepe;
matilhas atravessam a cena e a estepe sou eu,
eu a paisagem que se abstrai, assim como a presa.
O lobo-criança não se satisfaz:

rói sem abrir
as mandíbulas; sitiado na pele que mastiga,
consome a diferença de meu corpo atual
e, assim como veio, com a abertura dos olhos
regressa ao escuro covil de meu interior:
o passado do corpo, a enzima que corrói a carne
presente, some e assume de novo o estado de ossos.
Reinstala-se o dia através de minhas pupilas;
voltam a crescer-me os braços e os abro em par ao ser
que se desvanece:

roço o pelo do animal que foge.
Sorrio para a fauce que rosna pela última vez e me observo,
sinto no quarto alugado minha própria ereção.

Acapulco, 1994

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