São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 1995
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O curto infinito de Trevisan

BERTA WALDMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

"No teu labirinto a única saída é o ventre do Minotauro"
Dalton Trevisan

Com a publicação, neste mesmo ano, do livro de "haicais" que leva o provocativo título "Ah, É?" (Record), o trabalho de linguagem de Dalton Trevisan atinge tal nível de síntese que sua narrativa é lançada para um lugar limítrofe, híbrido, difícil de se classificar porque, de certa maneira avança para os domínios da poesia.
Como a obra de Trevisan sempre perseguiu a síntese e o silêncio, era de se esperar que ao alcançar, nos "haicais", um ponto de chegada forjado durante décadas o autor nele permanecesse. Mas não. Sua obsessão não é só a de contar a mesma história (diferente)* é também a de não terminar de contar essa história. Neste sentido o seu texto tem de ser lido e analisado como um campo de provas permanentemente submetido a novas experiências e transformações, procedimento surpreendente e louvável num autor que tem lugar de destaque assegurado na literatura contemporânea brasileira.
Em "Dinorá", seu último livro, Dalton Trevisan retoma o conto "Dinorá, Moça de Prazer", inserido em "Cemitério de Elefantes", e o faz dialogar com o texto que partilha com o livro o mesmo título. Em ambos a mulher é prostituta, pobre, analfabeta. Mas, no último, a narrativa escoa em registro poético (balada?), prática já experimentada pelo autor em outros livros (em "Pão e Sangue", por exemplo).
A segmentação apóia-se no princípio da manutenção de um sentido "complexo" para cada verso, construindo-se o conjunto de tal modo que a sucessão das frases (versos) é irreversível, dispondo os elementos narrativos justos, sem deixar sobras, o que é, sem dúvida, uma façanha, principalmente se se considera a disparidade de pontos de vista que o texto alberga.
Há tanto domínio no desenvolvimento do texto que o autor prescinde da pontuação, tornada dispensável pela clareza dos encadeamentos:
"Me surrou tanto não posso com a lata d'água
Ninguém por mim sou de menor
A mãe pobrinha lá no mato
Meu nome se duvida eu assino
Só que a letra sai trocada"
Assim, o diálogo fechado, endogâmico, que o autor promove, ao puxar um texto e imbricá-lo no outro, sofre um curto-circuito com a intervenção de um novo registro, que deflagra outros sentidos ao conjunto.
Também os "haicais" de Dalton Trevisan se tecem nesse cerco fechado, já que são, em geral, fragmentos pinçados de seus próprios contos. Em "Dinorá", o autor experimenta o caminho de sentido inverso. Em "Três maridos", por exemplo, três mulheres falam (mal) de seus respectivos maridos. Na fala da terceira mulher, o autor retoma o "haicai" 16, inserindo em "Ah, É?", e o submete à amplificação:
"Na cama o João vem pra cima de mim. Uma transa lá entre ele e a minha perna, não estou nem aí."
A trama que envolve o corpo alienado da mulher na transa com o marido ganha contornos, desdobramentos, suporte situacional; altera-se, em relação ao "haicais", o grau de tensão e de dificuldade na decifração de sentidos, mas mantém-se em ambos o registro da negatividade, e a intenção de denúncia.
A porosidade faculta esses movimentos no interior da obra de Dalton Trevisan, mas também na direção obra/autor. Assim, desde a publicação de "O Vampiro de Curitiba" este divide com sua personagem, Nelsinho, a mesma alcunha.
Isolado, recusando-se a dar entrevistas, a fazer pronunciamentos, discursos, a receber homenagens, o autor sempre se pautou pelo extremo recato com relação a dados de sua vida pessoal. Reticente em face a tudo que se assemelhe a invasão pessoal, Dalton Trevisan surpreende, neste novo livro, onde, em vários textos, sustenta seus pontos de vista expressos de fora das mediações ficcionais.
"Capitu sem enigma", "Esaú e Jacó", "Ao telefone", "Um conto de Borges", "Cartinha a um velho poeta", "Santíssima e Patusca", "Lamentações da rua Ubaldino", "Chupim Crapuloso", "Turin", são, de modos diversos, depositários de posições pessoais do autor, e, alguns desses textos, foram distribuídos por ele antes de serem reunidos em livro.
Neles, Dalton Trevisan impreca contra o beletrismo e o ufanismo paranista que superdimensiona artistas locais sem talento; contra a professora universitária de má-fé que furta e publica carta sem a autorização do autor, contra o jornalista que utiliza ardis inescrupulosos para conseguir uma entrevista; contra a leitura de "Dom Casmurro" que inocenta Capitu do crime de adultério; contra Curitiba, que foi perdendo as características de província de tradição agrária para ir-se transformando na ruidosa "ópera bufa de nuvem fraude arame".
No comentário que faz ao conto "Emma Zunz", de Jorge Luis Borges, Dalton Trevisan classifica a armação do enredo que, para o autor argentino, configura o crime perfeito, como farsa simplória, porque o sexo imaculado da vítima é prova inconteste de sua inocência. Emma, para vingar seu pai, simula ter sido forçada sexualmente pelo patrão dele e por isso a jovem o teria matado.
Para tornar sua versão convincente, entrega-se a um desconhecido, antes de encontrar o patrão do pai e, depois de matá-lo, ajeita o cenário; desarruma o divã, e a vítima: desabotoa o seu paletó e tira-lhe os óculos, mas mantém-se intacto o sexo. O argumento de Trevisan é interessante (além de engraçado devido à inserção estratégica da expressão "ay, carajo!" no texto) porque atinge em cheio uma característica particular do talento inventivo de Borges: o vazio do corpo, da experiência vivida.
Já em "Quem tem medo do Vampiro?" tal como em "Borges y yo", Dalton Trevisan desdobra-se para traçar o retrato de corpo inteiro do autor, representado obliquamente pela mirada da crítica. O resultado é vesgo e irônico, e as partes que compõem o retrato relevam os pontos da obra e do autor mais abordados:
– a repetição: "Quem leu um conto já viu todos."
– a pornografia: "No eterno sofá vermelho (de sangue?) a última virgem louca aos loucos beijos com o maior tarado de Curitiba."
– o cabotinismo: "Negar o retrato é uma secreta forma de vaidade, a outra face do cabotino."
– o frestador: "Pérfido amigo, usará no próximo conto a minha, a tua confidência no santuário do bar."
Neste "auto-retrato" há uma perturbação de sentidos porque o que retrata fala de si em terceira pessoa, como se fosse outro que, em realidade, é. Engraçado, irônico e caricato, o texto calca bem o traço grosso e distorcido de uma crítica zarolha.
Já Dalton Trevisan se compraz com esse retrato impiedoso e distanciado, sendo o retratado equivalente aos Joões e Marias, ao solteirão hipocondríaco, aos mocinhos do passeio, todos eles a caminho da única saída: o ventre do Minotauro, o salto no escuro entre o vazio e o nada, a alienação, a morte cerzida em noites de insônia.
Desse labirinto, salvam-se os animais, que merecem a cumplicidade afetuosa do narrador. Topi e a cadelinha de franja no olho, o sabiá, o galinho, a corruíra, sinalizam um lugar onde o vampiro não chegou. Bom seria que Dalton Trevisan reunisse numa antologia seus contos que tratam de animais para que o leitor pudesse avaliar melhor o que eles representam no conjunto de sua obra: momento de trégua no naufrágio rotinizado de nossos dias?
Como em outros livros, os contos reunidos em Dinorá são sobre a província, sobre o Vampiro, sobre Curitiba, lançados todos eles numa espiral de situações repetidas, de personagens dobradas, de acontecimentos reproduzidos, ecos de uma escritura fechada feita de avanços e recuos, de autocitação.
Essa observação, entretanto, conduz a um paradoxo, porque, se a matéria comentada é infinita na sua circularidade, a forma do comentário é singelamente finita e concisa. Curtos e insistentemente atraídos pela palavra única pela página em branco, os contos de Trevisan encontram na alegoria a solução formal para esse paradoxo. Aí, o Vampiro e Curitiba são, antes de tudo, formas de contar a sociedade liberal de arremedo que o chamado capitalismo tardiamente avançado produziu no Brasil.

(*) Tratei de repetição e diferença na obra de Dalton Trevisan em "Do Vampiro ao Cafajeste", Hucitec/ Edunicamp, 1989

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