São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 1995
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A nostalgia antropológica

ANTOINE DE GAUDEMAR
DO "LIBÉRATION"

Quase 60 anos mais tarde, Claude Lévi-Strauss publica as fotos que tirou durante sua estadia no Brasil entre 1935 e 1938. Aos 86 anos, o etnólogo, que não se considera fotógrafo, nem mesmo amador, acha, apesar disto, que chegou a hora de fazer esta retrospectiva, por medo de que ninguém depois dele possa descrever um mundo já desaparecido.
Para compor esse livro de imagens (leia abaixo resenha da edição brasileira), o sábio, com sua esposa, fez um novo inventário exaustivo dos 3.000 negativos que possui, antes de decidir mostrar apenas o Brasil, eliminando as fotos de outros países e continentes.
O título, "Saudades do Brasil", que exprime da melhor maneira possível a inefável nostalgia de uma época, de um país e de uma juventude, Lévi-Strauss o emprestou do compositor Darius Milhaud, que, dez anos antes dele, também se expatriara temporariamente no Brasil e sentia idêntica paixão pelo país.

Folha – Qual é sua história pessoal com a fotografia?
Lévi-Strauss - Sou filho e duas vezes sobrinho de pintor. Desde meados do século 19, os pintores utilizavam a fotografia como um acessório, sobretudo quando faziam retratos. Para checar, para ganhar tempo. Eles pediam à fotografia informações puramente quantitativas, o comprimento do nariz, a distância entre olho e orelha. Nenhum deles teria imaginado que um dia a fotografia iria tomar o lugar da pintura.
Tendo crescido em ateliês, vi meu pai e meus tios trabalharem dessa maneira. Meu pai tirava fotos e as revelava ele mesmo. Observando-o, aprendi os rudimentos desse trabalho. Como aquilo fascinava a mim também, comecei, por minha vez, a fazer fotografia.
Eu ainda estava na escola. Mas eu não fotografava cenas vividas, isso não me interessava. Eu construía toda sorte de objetos pitorescos e os fotografava sob iluminações rebuscadas. Recordo-me de uma máscara de papel que iluminei com duas velas, no mais puro estilo expressionista alemão. Eu jamais fazia um retrato ou foto externa. Para mim, a fotografia era um jogo estético.
Folha - Com que equipamento o sr. trabalhou no Brasil?
Lévi-Strauss - Minha estadia no Brasil coincidiu com a grande moda da Leica, que havia sido comercializada dez anos antes. A Leica era uma espécie de milagre. Podia-se fazer excelentes fotos com um aparelho que era praticamente de bolso. Conseguia-se retratar o menor detalhe, com muita precisão.
Eu fiquei entusiasmado com esse aparelho e comecei a fotografar, buscando as dificuldades. Cheguei a fotografar a página de um jornal de tal maneira que se pudesse lê-la perfeitamente na foto. Meu pai também se converteu à Leica e, quando veio me visitar no Brasil, nós rivalizamos. Na minha primeira expedição, também levei uma câmera 8 mm, mas me decepcionei imediatamente com o cinema.
Folha - Por que?
Lévi-Strauss - Filmar mobilizava toda minha energia e, quando eu filmava, deixava de olhar. Tanto que fiz apenas pedaços de filmes, que deixei no Brasil quando fui embora. Esses fragmentos foram encontrados, milagrosamente, 20 anos atrás, transcritos em 16 mm, e alguns anos atrás pude revê-los no centro Pompidou. Não fiquei mais convencido do que ficara 60 anos atrás. Trata-se de fragmentos pobres, sem qualquer interesse.
Folha - Em suas expedições brasileiras, o sr. pensou imediatamente em utilizar a fotografia?
Lévi-Strauss - Eu vivia uma experiência inteiramente nova. Era algo que me deixava maravilhado, e do qual era preciso guardar um registro. Assim, a fotografia se impôs como evidência.
Mesmo em São Paulo eu tinha esse sentimento, porque a cidade se transformava a olhos vistos –já em 1935 se dizia que em São Paulo se construía uma casa por hora. Assistia-se à cidade mudando literalmente da noite para o dia.
Folha - Como os índios reagiam à máquina fotográfica?
Lévi-Strauss - A reação era muito variável, dependendo dos grupos. Os caduveos, que já tinham contato com a civilização desde o século 18, sabiam muito bem o que era a fotografia. Sua sociedade era orgulhosa, e eles geralmente me pediam um presente em troca de uma foto, especialmente quando se tratava de uma bela mulher que acabava de pintar o rosto. Já os nhambiquaras não prestavam nenhuma atenção à máquina, eles não sabiam o que era e aquilo não despertava nenhum interesse neles.
Folha - Às vezes o sr. se via em situações constrangedoras?
Lévi-Strauss - A única vez em que me vi numa situação constrangedora não foi entre os índios da floresta amazônica, mas em pleno centro da Bahia! Eu passeava pela cidade, quando um bando de meninos negros me pediu para fotografá-los. "Tira retrato! Tira retrato!", eles gritavam. E foi o que fiz. Foi quando um policial pôs a mão no meu ombro. Segundo ele, ao fotografar as crianças, eu poderia dar ao exterior uma imagem negativa, parcial, do Brasil.
Folha - Quantas fotos o sr. fez?
Lévi-Strauss - Eu trouxe do Brasil cerca de 3.000 negativos, de qualidade e interesse muito desigual. Muitos deles se repetem. A primeira vez que os inventariei foi quando cheguei aos EUA em 1941, e foi por iniciativa do Serviço de Informações! O país se preparava para a guerra, os militares americanos ainda não sabiam onde ela iria se travar e estavam afoitos para conseguir toda e qualquer informação.
Minha coleção era recentemente e muito preciosa para eles. Apreenderam meus negativos, que foram todos revelados, e me pediram para comentá-los. Os americanos não estavam minimamente interessados nos índios, mas eram obcecados por tudo que dizia respeito às cidades, às construções, ao estado das estradas. Mais tarde, usei essas tiragens para meus livros, especialmente para Tristes Trópicos.
Folha - Depois disso o sr. continuou a fazer fotos?
Lévi-Strauss - Um pouco, mas há 30 anos não toco numa máquina fotográfica. Viajei bastante durante esse período, mas sempre sem máquina. Eu não gostava da moda da fotografia, nem da filosofia decorrente. Além disso, eu tinha a sensação de que tudo já havia sido fotografado e que não valia a pena acrescentar nada.
Folha - Que função o sr. atribui à fotografia em seu trabalho?
Lévi-Strauss - Uma foto é um documento. Existem belas fotos, mas para mim trata-se de uma arte de fato menor. Quanto à interpretação estudiosa das fotos, vou lhe contar uma historinha. Enquanto revia as fotos que eu havia feito 50 anos antes, muito deterioradas, alguém me explicou, em tom erudito, que aquela deterioração era ao mesmo tempo símbolo do tempo passado e do destino miserável ao qual os índios se viam reduzidos.
Ora, aquelas fotos estavam simplesmente estragadas, e eu nunca as havia utilizado. Ou seja: pode-se fazer uma foto dizer coisas demais. Ela é enganosa por natureza, porque se trata de um instantâneo e esse é desprovido de sentido se não há uma intervenção do que acontece logo antes e logo depois.
Filme atores dominados por grandes emoções e faça fotogramas: você vai constatar que apenas olhando para esses planos fixos é extremamente difícil determinar a natureza da emoção expressa por esses atores! É um problema antigo, que data do século 17, bem antes do nascimento da fotografia, e que diz respeito à pintura!
Os grandes pintores são aqueles que conseguem representar não apenas a cena, mas o que acontece antes e depois dela. No momento em que celebramos Poussin, devemos reconhecer nele um pintor desse tipo: Poussin é capaz de conferir a suas telas uma espessura de duração, e esse talento seu foi reconhecido em sua época.
Em etnologia, o problema é um pouco o mesmo. Especialmente quando se fotografa as atividades técnicas, os gestos do tecer, a confecção de uma arma. Às vezes se chega a um resultado melhor desenhando do que fotografando, porque o tempo de observação e de execução é mais longo.
Folha - De modo mais geral, que uso a etnologia pode fazer da fotografia?
Lévi-Strauss - Desde a invenção da fotografia, os etnólogos compreenderam que ela iria se tornar um instrumento indispensável. Todos fizeram fotos. Sem desconfianças, porque procuravam apenas obter documentos. E depois surgiu a idéia, sobretudo nos EUA, de que a fotografia iria permitir o aprofundamento total da etnologia, mais do que qualquer outro meio. Dizia-se que pelas fotos se descobriria o que não era possível enxergar de outro modo. Sob o incentivo de Margaret Mead, por exemplo, começou-se a fotografar Bali sob todos os aspectos.
Na minha opinião, trata-se de uma ilusão total. A fotografia é um material admirável para o etnólogo, mas que permite a este enxergar tudo que ele quer inserir nela.

Tradução de CLARA ALLAIN

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