São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 1995
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As murchas flores do mal de "Bilitis"

A fraude borgiana de Louys guarda apenas um charme de época

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Poeta, romancista e editor, Pierre Louys (1870-1925) foi um dos maiores nomes da literatura francesa no fim-do-século. Admirado por Valéry e Gide, parceiro e amigo do compositor Debussy, ele foi um incentivador dos simbolistas e uma eminência no círculo de herdeiros poéticos de Mallarmé.
Mas o século 20 não foi gentil com a sua memória e ele sobrevive, hoje, mais como uma nota de rodapé na biografia de seus amigos do que como o autor de "Aphrodite" (1986) ou "La Femme et le Pantin" (1900).
Talvez, de todas as suas obras, a mais importante tenha sido a revista "La Conque", que ele fundou e editou em meados da década de 1880. Foi ali que apareceram os primeiros poemas de Valéry, entre outros. E é isto também o que lhe confere a glória menor de ser uma nota de rodapé para o conto "Pierre Menard", de Borges.
Menard, que publicou "um soneto simbolista (...) duas vezes (com variantes) na revista "La Conque', é o grande herói da teoria literária moderna: ele reescreve, de memória, mas palavra por palavra, alguns capítulos do Don Quixote, provando a seguir a superioridade da cópia. A recriação (não a criação) se transforma, com ele, na marca por excelência da literatura. Noções tradicionais de causa e efeito –toda a mitologia da origem– caem por terra, quando a leitura se mostra como forma suprema da literatura.
Numa cultura já tão tardia, cada autor e cada leitor está sempre reinventando os outros e o plágio, bem mascarado, é, num certo nível, sinônimo de invenção. A literatura realça a distância entre as palavras e as coisas, e escolhe ficar do lado das palavras. Se neste contexto a história de Borges é um diálogo com Valéry, também não é por acaso que faz referência à revista de Lou˜s –pois foi ele o autor de uma das mais extraordinárias fraudes, ou paródias, literárias da história.
Publicadas há exatamente cem anos, suas "Canções de Bilitis" vêm prefaciadas por uma breve "biografia", combinando filologia clássica e arqueologia, e descrevendo a existência de uma poetisa grega, contemporânea de Safo. Seguem-se 146 poemas em prosa, "traduzidos" por Louys num "romance lírico", dividido em três partes: as Bucólicas, com a narrativa do primeiro amor de Bilitis; as Elegias, em que se detalha sua grande paixão lésbica; e os "Epigramas", relativos à vida posterior, como cortesã. Três epitáfios compõem a coda, que, como grande parte da coletânea, fica entre o erótico, o solene e o sentimental.
Há muitas ironias envolvidas no destino desses poemas eróticos "gregos". Segundo se conta, foi só no leito de morte que Lou˜s confessou ser o verdadeiro autor das Canções, até então consideradas autênticas. A revelação custaria caro ao prestígio do poeta, na mesma medida em que recupera, agora, alguma coisa de seu interesse.
É difícil crer na suposta ingenuidade dos filólogos franceses, mas a sedução do helenismo sempre foi grande e até o novo (e bom) tradutor brasileiro parece disposto, ainda hoje, a acreditar no francês "fin-de-siècle" de Louys como expressão do "perfeito estilo grego de 2.500 anos antes".
Para nós, que aprendemos a ler com Borges, é difícil avaliar a extensão da ofensa praticada por Louys. Mas é preciso lembrar que é nessa mesma época que se dá o estabelecimento da história literária como disciplina acadêmica na França. É justamente nesse período que surgem a "dissertação" e a "explicação de texto" como exercícios escolares; e é neste momento que se promove a separação entre crítica (subjetiva) e história (científica). Ao pôr em cheque o estudo das "fontes", o pastiche de Lou˜s desafia a própria condição do estudo "científico" da literatura, bem como dos valores humanísticos sobre os quais este estudo se ancora.
Ao contrário do que diz o tradutor dessa linda edição em português, as Canções não só "resvalam", sim, pela pornografia, mas podem até ser lidas como estrategicamente obscenas. O que dizer de frases como essas: "Ela entrou, e apaixonadamente, com os olhos semicerrados, uniu seus lábios aos meus e nossas línguas se conheceram... Ela, em pé, se apoiava em mim, toda amor e consentindo. Um dos meus joelhos, aos poucos, subia entre suas coxas quentes..."?
Ou "quando... procuras meu seio, boca estendida, e me sugas com vagar entre teus lábios palpitantes"? Ou ainda, na mais antiga e inigualada tradução de Guilherme de Almeida: "Porque vi tremer sobre a água mil pequenos lábios de luz: o sexo puro, ou o sorriso de Kypris Philommeidès".
Como ensina Barbara Johnson, o desvelamento textual de Mallarmé acaba sempre levando ao "último véu –a escrita em si". E o desvelamento de Lou˜s é tanto textual quanto sexual. O conhecimento sexual é o mais difícil e mais elementar território da consciência; mas só se chega a ele, na obra de Lou˜s, pelas vias do distanciamento.
Há, sem dúvida, uma boa dose de voyeurismo nestes poemas, que têm tanto de "grego" quanto são "gregos" os pavilhões em tom pastel de Puvis de Chavannes, ou o fauno de Mallarmé. O estilo "grego", aqui –todo o artifício do pastiche–, representa, isto sim, uma possibilidade de fazer ver o que não se pode, ou não se deve ver. Uma geração mais tarde, é precisamente o esvaziamento de todos os estilos que vai cumprir o mesmo papel: devolver as palavras às coisas e dissolver a literatura na experiência.
Longe da política sexual –longe de uma leitura ideológica dos poemas–, é isto o que ainda guarda interesse em Lou˜s. Não é muito, mas é significativo no contexto da época. A virtude crítica, no entanto, nem sempre é o ganho da estética. As ironias, aqui, são externas aos poemas; e sobram só os "fulminantes e irresistíveis caprichos" de que falava Valéry, sobra o orientalismo (que Lou˜s cultivava em casa, também, com sua amante Zorah Ben Brahim) e sobra um charme já meio gasto de época, para se desfrutar em pequenas doses e sem levar muito a sério.
"Psiquê está sempre livre", diz uma das canções, na linguagem liberada deste "pequeno livro de amor antigo". "Psiquê está sempre presa" seria um aforismo mais realista e mais condizente com a nossa época. Desde o início do século 19, aliás, que o realismo não cessa nunca de se reinventar, sob as mais variadas e mais irônicas formas. Um de seus disfarces involuntários é o maneirismo, como atesta a poesia de Lou˜s –que nisto, também, antecipa alguns traços do maneirismo do nosso próprio fim-de-século.
Fora dos rodapés, ou da partitura de Debussy, talvez não seja mais possível, a esta altura, reviver o charme desses poemas. São flores meio murchas do mal, que nem os humanistas nem os ironistas têm força para reanimar. Resta saber até que ponto o nosso maneirismo é tão diferente do de Lou˜s e até que ponto as nossas canções vão ter vida mais longa que as sedutoras, enganosas e tão datadas Canções de Bilitis.

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