São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 1995 |
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Muito além da "Curva do Sino" O negro no Brasil raras vezes produz informação sobre si ANGELA GILLIAM
No Brasil, como nos EUA, os postos de poder político e econômico são predominantemente ocupados por brancos. Por outro lado, a mídia brasileira reforça a idéia de uma democracia racial governada por "brancos capazes", institui uma beleza idealizada européia como padrão, e reafirma o "lugar do negro" em posição serviçal, como é feito nas televonelas. Estes são claros indícios dos empecilhos existentes à participação plena na cidadania. Nos dois países os conceitos de "brancura" e "embranquecimento" têm sido a base ideológica do peso que carregam os negros. No Brasil, a narrativa-mestra (a história oficial) sobre a miscigenação é o eixo principal do mito da "tolerância e a simpatia entre as raças" e da democracia racial. Mas a miscigenação não transforma a estrutura da sociedade. Afirmar que os EUA é o pior lugar no mundo para os negros, é projetar em outro país os problemas do racismo brasileiro e assim anular o fato de que a elite branca em ambos os países se sente no direito de interpretar os fatos a respeito da realidade vivida pela raça negra. Ao mesmo tempo, dizer que o negro dos EUA "vive melhor do que o da Nigéria", como sustentou Carlos Eduardo Lins da Silva, é enfatizar demais a vida material dos norte-americanos ao mesmo tempo em que se abandona o sufoco da vida cotidiana de muitos negros brasileiros. Primeiro, os EUA estão sendo sacudidos por um debate nacional a respeito do que é ser um norte-americano e o que constitui a "cultura" do país. Em segundo lugar, estatísticas prospectivas para o século 21 mostram que o segmento branco terá perdido seu status majoritário, e a sociedade norte-americana será forçada a reconhecer a sua realidade multicultural e pluriétnica. Portanto, para muitos cidadãos, o país está imerso em uma guerra onde os conceitos de "cultura" e "raça" se confundem e se interpenetram. Central neste debate é a luta para transformar a narrativa-mestra da criação do país como uma "nação democrática" fundada por "nossos pais peregrinos". Neste sentido, os "pais fundadores" estabeleceram um país pacífico onde hoje reina a "liberdade por excelência". A narrativa-mestra veiculada ainda nas escolas assume que os indígenas eram parte da floresta a serem domados, da flora e da fauna silvestres. Além do mais, a história dos negros nos EUA começa com a sua dominação e a sua classificação como "coisa" ou melhor, propriedade. Apesar das diferenças, pode-se dizer que muito da cultura nacional dos EUA e do Brasil reflete uma mesma contradição: por um lado, a herança compartilhada da escravidão e do genocídio e, por outro, a negação da importância desses fatos como sinal socio-histórico para a formação das sociedades nacionais. Nos EUA, interpretações alternativas por parte de muitos grupos étnicos diferentes têm desafiado a narrativa-mestra, suscitando uma crítica rica e nova, tanto nas ciências sociais quanto na literatura de ficção e em outras artes. A comemoração dos quinhentos anos da chegada de Cristóvão Colombo provocou novas perguntas e, ainda, afrontou a própria definição de "desenvolvimento". Atualmente nos EUA, professores e alunos dispõem de muitos livros escritos por membros de várias nações indígenas que revisam as ciências sociais e a história. Além disso, há acadêmicos de descendência africana ou mestiça que escrevem com a nova metodologia de entrecruzar as variáveis de raça, gênero e classe. Outrossim, alguns intelectuais de descendência européia já estão questionando a construção social da brancura. O debate atual inclui autores homossexuais que debatem se a sexualidade é biológica ou socialmente construída. Esta nova tendência tem sido aceita por pouquíssimos integrantes da elite norte-americana porque ameaça o "status quo". As demandas por novas narrativas têm sido taxadas tanto de "extremistas" quando de exemplos do "politicamente correto". O conceito ou rótulo "politicamente correto" nos EUA representa uma tática conservadora para banalizar e neutralizar as críticas que desafiam a narrativa-mestra. É preciso deixar bem claro para os leitores brasileiros que o povo norte-americano é muito mais do que a imagem exportada pela mídia controlada pelos que se sentem ameaçados. Então, este é o contexto dentro do qual um livro com "A Curva do Sino" foi "coincidentemente" disseminado em cima da hora das eleições nos EUA - e aliás, também no Brasil. A tese de Murray e Herrnstein de que os testes de QI revelam uma inferioridade genética e irremediável de negros, está sintonizada com as recomendações políticas de que subsídios não devem ser canalizados para a melhoria das condições dos negros. "A Curva do Sino" já causou um enorme impacto, em parte pela atenção dada por jornalistas, como denunciou Marilene Felinto. O mais importante é que "A Curva do Sino" também emerge num período em que o componente literário da luta pelos direitos humanos é parte de uma produção cultural que desafia o monopólio do saber e representação. Têm crescido as comunidades dos cidadãos nos EUA que sentem que têm um direito de participar em toda a complexidade intelectual da nação. Este fato produz um senso compartilhado de "empowerment". Esta insurreição teórica não será silenciada pela emergência de livros racistas e reacionários. A luta coletiva, ao nível destas novas vozes e discursos, cria para muitos negros nos EUA um sentido de possibilidade. Ser parte de uma resistência coletiva, acessível e disseminada, diminui o impacto do racismo, porque a pessoa pode perceber de que não está só. Este fato tem que ser contrastado com a situação no Brasil, onde se produz a invisibilidade do negro e seus problemas no cotidiano, isto se deve em parte ao fato de que o negro raras vezes produz informação sobre si mesmo. Tenho trocado idéias sobre estas questões com muitos brasileiros. Uma das observações mais consistentes feita por aqueles que se identificam como negros é que não têm acesso, através de traduções, a estas novas vozes no debate norte-americano. Por outro lado, aqui no Brasil, os bons e desafiantes trabalhos são poucos e bastante inacessíveis. Não há uma comunidade de teóricos alternativos que facilitem a busca de narrativas e experiências engajadas que dêem força para sobreviver às indignidades diárias do racismo. Como disse uma colega baiana: "Todos os dias algo se passa que reforça a dor profunda que sinto por ser negra". A experiência de muitos negros brasileiros é oposta à narrativa da mestiçagem e do mito da democracia racial brasileira. Para evitar experiências decorrentes da condição de negra brasileira, muitas vezes sou forçada a me refugiar na condição de estrangeira de fala inglesa, ou de assumir status de "branca honorária". Essa designação infeliz vem do passado sul-africano, enquanto os EUA e o Brasil estão vivendo condições de conflitos culturais profundos e, cada vez mais, é apresentada como criminosa a população negra. A luta por inclusão tem que ser abraçada nos dois países, caso contrário, ficaremos com o velho paradigma de civilização onde os jovens são levados a pensar que a transformação do mundo é impossível. Tal crença tornaria ambos os países "ingovernáveis". Texto Anterior: Brasileiros não toleram críticas Próximo Texto: Saiba o que é o livro Índice |
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