São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 1995
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Passeio irreal

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

Domingo à tarde, enfrento uma nublada e vazia São Paulo para passear com um amigo europeu. Dois ou três bares fechados, resolvo girar pela Vila Madalena, como se sabe, bairro apinhado de lugares baratos para chope e conversa fiada. Encontro um bar aberto, bossa nova na vitrola, mesas na calçada.
Ok. Sentamos e o garçom apresenta o cardápio:
Margarita: R$ 7
Chope: R$ 1,50
Uísque bom: R$ 10
Uísque médio: R$ 8.
Cálculos rápidos. A dose está custando o preço da garrafa num supermercado europeu. Chamo o garçom e registro o protesto. "É verdade, está um absurdo", concorda o manso empregado.
Encaramos o prejuízo. Depois de dos margaritas, pastéis, chopes e cerca de US$ 50 de conta, compramos numa banca o "Le Monde" do dia 6. Título de página interna: "Brasil não vê razão para desvalorizar moeda".
As explicações são as mesmas que frequentam as páginas da imprensa daqui. Tudo sob controle.
Mas para meu amigo europeu que, infelizmente, pouco entende de estabilização de economias periféricas e âncoras cambiais, a realidade –e o bolso– urram: "O Brasil está tão caro quanto as mais caras cidades da Europa!", "A relação entre o real e o dólar é artificial!".
Pobrezinho, não sabe que o mercado de câmbio está livre, que o país tem US$ 40 bilhões de reservas, que há dólar sobrando na praça, que não usamos sombrero nem dançamos tango.
O clima de otimismo insuflado pelo real tem suas razões de ser, mas parece que vai trocando a irrealidade da economia inflacionária por uma outra fantasia. Guio pela cidade chuvosa e uma certa artificialidade noveau-riche impregna o ar. Lembro-me da Itália de quatro anos atrás.
Depois do miserê do pós-Guerra, os italianos expandiram a economia e chegaram ao final da década de 80 com um PIB que batia o inglês. Ragazzi, euforia total! Meios de comunicação só falavam na excelência do "made in Italy" e na miraculosa performance econômica. Italianos invadiam a Europa para vingar o assalto dos bárbaros: compravam tudo e muito mais. A lira italiana, em 90, chegou a ser trocada praticamente a um por um com o dólar.
Mas todos na Europa intuíam que alguma coisa estranha estava acontecendo. Ninguém acreditava realmente que a moeda italiana pudesse estar tão valorizada. Hoje, quatro anos depois, troca-se um dólar por 1.600 liras. Uma queda de cerca de 60%.
Sigo o passeio e vem-me também à cabeça os nada saudosos anos do general Ernesto Geisel. A frase lapidar: vivemos numa "ilha de paz e tranquilidade". É o que os alquimistas da economia querem nos fazem crer? Mais uma vez, nos vemos condenados a um lugar fora do mundo: a experiência de outros países aparentemente em nada afeta nossas vidas. Está tudo bem, tudo tranquilo, tudo ok, crianças. Viro para meu amigo e faço o convite: "Nas próximas férias vamos à Bahia". Ele olha longe pela janela e volta-se para mim:
"Ano que vem eu vou para a Itália", diz aliviado.

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