São Paulo, quarta-feira, 18 de janeiro de 1995
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O Senado e o ressentimento nacional

ROBERTO ROMANO

Em artigo em que apontei mazelas do Senado, sobretudo a farsa da "anistia" ao sr. Humberto Lucena, beneficiando outros que abusaram da gráfica parlamentar em proveito político pessoal, discuti a responsabilidade da Câmara Alta no Brasil. O professor Renato Janine, em texto elegante, divergiu das minhas análises, concordando com a essência dos meus argumentos.
Todo brasileiro sério se preocupa com as ameaças à integridade de nosso Estado federal. Quem viaja pelo país sabe o quanto os vínculos entre regiões se esgarçam pelo ressentimento, pela injusta partilha dos poderes e do excedente econômico. Em várias cidades sulistas é costume rasgar a Constituição quando se trata do direito de ir e vir.
O caso de Araraquara (SP) é significativo. Naquela urbe, quem denuncia a presença de imigrantes "indesejáveis", recebe uma soma em dinheiro. Não sabemos se a quantia equivale a 30, como no caso de Judas Iscariotes. O valor moral é comparável. Sugestão às autoridades locais: sigam os conselhos de Swift. Na rodoviária, escolham criancinhas apetitosas (a tarefa é difícil, dada a miséria dos pais), assem e sirvam aos patriotas araraquarenses que receberam moedas para delatar concidadãos.
Na Folha (15/01), temos outra receita: os "gênios" americanos recomendam matar todos os pobres, os doentes etc. "Um pedaço de carne sem inteligência não constitui um homem". No centro de Araraquara, eleve-se um matadouro público de mendigos, para alegria dos administradores municipais.
Muitas cidades brasileiras assumem tal atitude. Já ouvi, de separatistas, no sul, frases como esta: "Vocês de São Paulo não podem participar de nossa união porque estão muito sujos". O que constituiria a tal "sujeira"? "Sujos: cheios de pretos, nordestinos etc". Sublime etc...
É possível escutar, em lugares nordestinos e nortistas, palavras de ódio contra o Sul. Nestas horas, são esquecidas as oligarquias, os parasitas de Brasília etc. O ressentimento move grupos e indivíduos que recebem propaganda separatista eivada de preconceito racial. Dessa semeadura maldita algum fruto surgirá. Os primeiros sinais já aparecem.
Urge discutir a Federação brasileira, procurando o convívio democrático e justo entre suas parcelas. O Senado é essencial na tarefa de conciliar nossas diferentes regiões. A função conservadora dos senadores no mundo moderno não nos impede de recordar sociedade e formas estatais constituem máquinas de viver que podem ser modificadas, mantendo seu nome.
Entre a senatoria do século anterior (e a de hoje, no Brasil, concorde-se com Renato Janine) e um Senado que una a nossa Federação há muita diferença. A proposta do professor Janine retoma o defeito do Estado brasileiro: um colégio de governadores, substituindo os representantes, reforçaria os Executivos regionais, diminuindo o peso democrático dos parlamentares.
Quem passou por governos como o de Fleury, em São Paulo, receia dar a esses políticos uma função eminente, só bem exercida por pessoas assinaladas pela ausência de interesses administrativos imediatos.
Após Napoleão, não apenas o Senado conservou o status quo: bom leitor de Stendhal, Renato Janine sabe que toda a sociedade francesa aplicou-se neste mister, com a delação anônima e a tristeza coletiva, magnificamente apresentadas em "O Vermelho e o Negro". No "Le Moniteur" (24 de Brumário) lemos: "A França deseja algo grandioso e durável...(ela) quer um corpo legislativo independente e livre... Deseja que seus representantes sejam conservadores e pacíficos, e não inovadores turbulentos". Tudo no reino napoleônico –inclusive imprensa e universidade– tornou-se "conservador".
A desconfiança no Legislativo, após a tentativa de controlar a representação política, foi herdada pelos positivistas. Esta é uma das desgraças de nossa história. A doutrina sobre a ditadura dos intelectuais, unidos aos militares, produziu o preconceito que integra o "ethos" brasileiro contra a política. É tempo de mudar essa mentalidade. Caso oposto, estaremos sempre à beira da fragmentação ou de seu "remédio", os golpes para garantir o poder central.
Uma ajuda fantástica para manter a prevenção contra o Congresso está sendo fornecida pelos próprios parlamentares. A "anistia" aos que se apropriaram dos bens públicos para sua propaganda política pessoal só prova, aos cidadãos exasperados, que a saída autoritária é a única.
Um Fujimori está sendo gerado nos bares do Parlamento. O aborto deste monstro será a salvação da república democrática. Seu parto saudável mandará o país, definitivamente, para a vala comum da história.

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