São Paulo, quarta-feira, 18 de janeiro de 1995
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Renda mínima

ANTONIO DELFIM NETTO

No Brasil os espíritos são extremamente sensíveis. Qualquer observação não laudatória é encarada como "falta de cooperação", como escondendo "inconfessáveis interesses" ou "pura ignorância" (a classificação, obviamente, não é completa).
Em lugar de procurar encontrar a pequena verdade que eventualmente possa estar oculta na crítica, para entendê-la ou negá-la, confunde-se a crítica com o crítico. À afirmação de que dois mais dois não seja 5, responde-se "você é vesgo"!
Outro dia, um ilustre "nouveau économiste" especializado em economia industrial fazia uma brilhante exposição confundindo "custo médio" com "média de custos". Bastou uma simples observação para que a resposta fosse rápida (e lógica!): "Eu estive exilado e você serviu ao regime militar". Cáspite!
Na semana passada publicamos nesta mesma coluna que o programa de renda mínima (na verdade uma variante do imposto de renda negativo) era a expressão máxima do individualismo e era divertido vê-lo defendido por ex-tomistas arrependidos, metamorfoseados em social-democratas e muito mais ainda, por ex-quase-marxistas. Isso bastou para que uma resposta telefônica fosse: "Reacionário!"
O problema é interessante porque: 1) essa não é uma crítica ao programa ainda que tenhamos sérias dúvidas sobre ele e 2) porque a classificação de "individualismo" (individualismo metodológico) não pode tisnar uma idéia a ponto de torná-la um pecado.
Não é preciso muita acuidade para entender que os possíveis benefícios de um programa de renda mínima decorrem da proposição de que ele deve aumentar o nível de bem-estar dos indivíduos.
Uma doação em dinheiro permite-lhes escolher melhor (mais de acordo com sua função-utilidade) do que uma doação equivalente em espécie. Mas essa afirmação decorre da mais completa aceitação do individualismo metodológico!
O problema é que ela é demonstrada para um indivíduo e logo, magicamente, contrabandeada (sem nenhuma prova adicional) para a família, como se a função-utilidade do seu chefe coincidisse, necessariamente, com a dos seus membros.
O programa de renda mínima transforma o chefe de família no "agente principal" da sociedade para atingir os seus fins: transferir recursos de forma eficiente para atender às suas necessidades básicas.
É exatamente por isso que aparece o "risco moral": o agente principal pode tentar satisfazer as suas próprias necessidades (cigarro, bebida) e não as de seus dependentes (leite, habitação). Não é possível (a não ser com hipóteses muito restritivas) demonstrar para a família, cujos membros têm diferentes funções-utilidade, que a proposição clássica que deu suporte ao programa seja verdadeira.
Em algum momento do processo civilizatório, as críticas hão de limitar-se aos argumentos e deixar de ser hipócritas homilias pseudomoralizadoras, que revelam mais a arrogância e pretensão dos críticos do que seus conhecimentos.
E reacionário, mesmo, era o velho Aristóteles!

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