São Paulo, quinta-feira, 19 de janeiro de 1995
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O impossível Darcy

DAVID LERER

Dia 5 de dezembro Darcy é internado na UTI com seu único pulmão tomado por uma pneumonia que evolui para septicemia, num organismo sem defesas devido à irradiação e à quimioterapia. Entra em coma.
O senador está por horas –avisa o médico. Os amigos cancelam compromissos e ficam à espera. Vão-se as primeiras 24 horas, depois 48, 72 horas, é a luta do santo guerreiro contra o dragão da maldade, vão-se dias e semanas. Darcy derrota a morte. Acorda, puxa fios e tubos, tapa com o dedo o buraco da traqueostomia e rouqueja: Onde diabo vocês me enfiaram?
E foge do hospital para continuar a viver.
Enganei vocês todos, hein? –sussura Darcy com um risinho feliz. Passam-lhe o telefone, que não pára. É Gabriel García Márquez falando de Cuba; ele telefona dia sim dia não. Agora a voz é outra, um sotaque cantado do Caribe pontilhado de "carajos": Fidel.
É a segunda vez que o guerreiro Darcy vence o dragão. A primeira foi em 1974, no exílio, quando foi diagnosticado câncer no pulmão. Relata o jornalista e amigo fraterno Márcio Moreira Alves que, ao saber que o tumor só poupava 15% dos casos, Darcy disse otimista: "Tenho muita pena dos outros 85%". Tirou um pulmão e está aí até hoje.
Darcy, 72 anos, é homem de muitas vidas, cada uma mais rica que a outra. Nesta que recém-inicia já conseguiu escrever um livro. Diz Darcy que estava "grávido" de "Os Brasileiros" há 30 anos, mas só agora, ao sair do hospital, os capítulos fluíram lisos e redondos. Quatrocentas páginas em 20 dias. Parece impossível, mas era necessário.
Já o presidente Fernando Henrique Cardoso, outro intelectual de nomeada, promoveu o "possível" a adjetivo da moda e divisor de águas do bom senso cívico: o ministério possível, a reforma possível, o governo possível. Basta aparecer na televisão com rosto grave –sério– e dizer com ar profundo que se está fazendo o possível para que a platéia não só acredite como até se compadeça. É "no gogó", se vangloria FHC. É o discurso do óbvio –descobre Carlos Heitor Cony (sempre ele; não é à toa que o marechal Castello Branco espumava só de ouvir falar seu nome).
Acontece que não há igualdade, e o que é possível para uns não o é para outros, justamente os mais necessitados. Por exemplo, é possível aumentar 140% os salários do presidente, ministros e parlamentares, mas não é possível aumentar de R$ 70 para R$ 100 o salário mínimo. Há mais "possível" para uns do que para outros.
Com Darcy ocorre o contrário. Transformar a realidade e tornar possível o que é necessário –está aí sua maior lição para as novas gerações.
Em 1960 parecia um sonho louco criar uma grande escola no vazio do Planalto Central. Mas era a "universidade necessária" de Juscelino, que encarrega Darcy de realizá-la. Nasce a Universidade de Brasília, centro de referência nacional até sofrer duros golpes na contra-revolução de 1964.
Trinta e poucos anos mais tarde, Brizola, governador do Rio, mais uma escola difícil será implantada por Darcy. Em Campos, cidade de tradição conservadora, surge a Universidade do Norte Fluminense, dedicada a especialidades de ponta na ciência e tecnologia. Outra universidade necessária.
Jovem antropólogo formado pela USP que, inspirado pelo marechal Rondon, passa anos vivendo com os índios no Xingu; pregador das reformas de base no governo João Goulart, do qual foi chefe da Casa Civil e defensor até o amargo fim; autor acadêmico mais publicado fora do Brasil; político inconformista e mais, muito mais, são as muitas vidas de Darcy Ribeiro –o intelectual mais importante da nossa geração.

(1975-77).

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