São Paulo, quinta-feira, 19 de janeiro de 1995
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As bases do diálogo

PAULO TARSO FLECHA DE LIMA

O embaixador do Brasil em Washington (EUA) não é contra as organizações não-governamentais e a transparência democrática. Nem pode ser contra a universidade dos direitos humanos –mandatória como princípio diretor da política externa brasileira conforme a Constituição.
Jamais neguei que o Brasil enfrente problemas –muitas vezes sérios!– de direitos humanos. Ao contrário, esse reconhecimento é precisamente premissa do diálogo que, sem necessidade de convite de ninguém, a Embaixada em Washington tem procurado assegurar para que seja o mais amplo e aberto possível.
Insisto, entretanto, que é meu dever defender o país de caracterizações despropositadas, de acusações caluniosas, levianas ou simplesmente falsas, disseminadas irresponsavelmente por esta ou aquela entidade dos setores ditos "independentes".
Como agente de governo democrático, todo embaixador do Brasil deve honrar a designação recebida, respaldada na legitimidade do presidente que o nomeia e do Senado que o referenda –em última análise, a legitimidade do mandato conferido nas urnas aos representantes da nação. Não é o caso das ONGs, que, com todos os méritos que possam ter –e não os desconheço– não possuem legitimidade equiparável ao Estado de Direito, nem a decorrente responsabilidade com relação ao público.
É para mim inconcebível que se busque censurar como "bravata patrioteira" (Paulo Sérgio Pinheiro, "Transparência é preciso", Folha, 11/01), ou ironizar como "furiosas" (Fábio Konder Comparato, "Para estrangeiro ver", Folha, 6/01) as sóbrias tentativas de restabelecer a verdade sobre o Brasil, verdade essa que anda escassa nos últimos relatórios não-governamentais que me chegam às mãos aqui em Washington.
Ou concorda o professor Pinheiro com a idéia de que o presidente Fernando Henrique Cardoso se elegeu à custa de "uma campanha eleitoral repleta de controvérsias e escândalos", conduzida de forma "relativamente livre", como afirma a Americas Watch? E por que o senhor Javier Zúñiga ("Dialogar é preciso", Folha, 15/01) deixa de mencionar que o diretor-executivo da Anistia USA, ao lançar o documento de contribuições à Cúpula de Miami, acusou textualmente o governo brasileiro de praticar política (!) de "faxina social de indesejáveis", em texto de "press release" amplamente divulgado? Esse certamente não é o Brasil real!
Veterano de quatro décadas de política externa, só posso orgulhar-me das contribuições diretas, ainda que modestas, que pude prestar à causa dos direitos humanos na esfera de atuação do Itamaraty. Lembro que o Brasil domina de longa data o vocabulário dos direitos humanos. Participou ativamente, por exemplo, da elaboração do texto da Declaração Universal de 1948, marco divisor da presença do tema na agenda internacional contemporânea. Tendo-se afastado momentaneamente dessa linha atuante nos anos do arbítrio, a ela retorna –e não lhe descobre a "gramática"...– apenas iniciada a abertura: já em 1977 o Brasil é eleito para a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas.
O ano de 1985 marca, isto sim, o início formal do processo de adesão aos grandes instrumentos jurídicos internacionais e interamericanos de proteção aos direitos humanos –os Pactos de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos e Sociais das Nações Unidas e o Pacto de São José. Não por obra do acaso, mas por históricas decisões do presidente José Sarney, com base em recomendação explícita do Itamaraty, objeto da especial atenção dos chanceleres Olavo Setúbal e Roberto de Abreu Sodré, e de criterioso esforço da Casa de Rio Branco que, como então secretário-geral, tive a honra de coordenar.
Já como embaixador em Londres, fui um dos primeiros diplomatas brasileiros graduados a estabelecer relacionamento formal com a cúpula do movimento não-governamental, ao visitar, em 1990, o então secretário-geral da Anistia Internacional, Ian Martin.
À mesma época, estabeleci diálogo com Robin Hanbury Tennyson, da Survival International. Em consequência, das constrangedoras e pouco produtivas vigílias da entidade frente à Embaixada em Londres, passou-se a intercâmbio franco e construtivo que perdura. Repilo, portanto, as tentativas de individualizar-me como um opositor das ONGs ou acusar-me de preferir a "política da dissimulação" às virtudes da transparência democrática.
Nos Estados Unidos, tenho aprofundado essa clara opção pela abertura e transparência. Cartas, folhetos e artigos da Embaixada em Washington não escondem que o Brasil tem problemas a superar. Mas a serenidade no reconhecimento de obstáculos e desafios está longe de significar a aceitação passiva de um processo sistemático de distorção da realidade brasileira.
Incorreria eu em grave omissão se calasse, se não cobrasse veracidade e mais objetividade das análises sobre o Brasil, com o objetivo precípuo de garantir o reconhecimento de compromissos e avanços realizados pelo governo e pela sociedade brasileiros.
O requentar sistemático de acusações e percepções equivocadas não serve à causa de uma sociedade mais equânime e mais justa, compromisso do presidente Fernando Henrique Cardoso.
Lembra-nos o professor Celso Lafer que os direitos humanos constituem capítulo específico do relacionamento internacional. Deixamos de lado os princípios de defesa de "interesses concretos" dos Estados, as barganhas políticas ou econômicas fundadas na interdependência e as preocupações estratégicas apensas à dinâmica guerra/paz, para ir buscar, nos domínios da ética, uma proposta de consolidar a organização convivial das sociedades que se concretiza mediante a (auto)limitação do arbítrio das soberanias em prol do indivíduo e da coesão do tecido social.
Não esqueçamos, entretanto, os limites do "real concreto", nem imaginemos que ao Estado é possível ultrapassar, por mero desejo ou decreto, as dificuldades materiais de realização de uma vontade política estabelecida.
No Brasil, aliás no mundo todo, a vigência plena dos direitos humanos só se viabilizará por uma ação concertada entre sociedades e Estado. É precisamente a vitalidade interna dessa "nova parceria", expressa claramente nas urnas em outubro último e nas atuais prioridades públicas para o Brasil –a concretização do trinômio democracia, desenvolvimento e justiça social–, que tenho procurado apontar como o desdobramento mais positivo de nosso amadurecimento político e social ao longo da última década.
Não seriam essas as bases para a continuação do diálogo?

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