São Paulo, quinta-feira, 19 de janeiro de 1995
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Quente ou frio

OTAVIO FRIAS FILHO

Ao acentuar a sensação de que nada está acontecendo, o vazio de janeiro reforça a tese oficial de que o governo será um "processo", sem surpresas e solavancos.
O solavanco do México e a surpresa do déficit mostraram que nem tudo é tão "processo" assim. Mas o ideal de qualquer governo coincide com a tese de que a história e seus aborrecimentos chegaram ao fim.
Inspirada no colapso soviético, a tese sustenta que o mundo chegou a um estágio final de autoconsciência com a economia de mercado global. Continuará havendo fatos e conflitos, mas revoluções nunca mais.
Muito antes desse modismo, o antropólogo Claude Lévi-Strauss (a principal influência compartilhada pelo casal FHC) havia dividido as sociedades entre as que têm história e as que não têm.
Ao contrário do padrão ocidental, os povos "primitivos" vivem sob a mesma organização há milênios. Não evoluem e por isso Lévi-Strauss disse que eram sociedades de tipo frio, em oposição às quentes, que mudam.
A pergunta é se estamos agora nos transformando num novo tipo de sociedade fria, efervescente do ponto de vista tecnológico e comercial, mas estática do ponto de vista histórico.
A vitória dos EUA sobre o modelo socialista gerou uma enorme consenso em torno dos valores da economia de mercado, com resultados que vão muito além dos econômicos.
Os acordos de paz na África do Sul, na Irlanda e na Palestina, por exemplo, só aconteceram porque os grupos rebeldes desistiram de uma luta alternativa ao modelo ocidental vitorioso.
O interessante nos países islâmicos é que a resistência à ocidentalização é muito mais persistente e profunda do que em qualquer outro lugar.
Para cada OLP que é domesticada, surge uma outra igualmente fanática. Há um núcleo duro na mentalidade muçulmana que o hábito de ir ao McDonald's ou usar calça Levi's não altera.
Mesmo no Egito, o mais ocidentalizado dos países árabes, é surpreendente constatar o alheamento do Islã em relação ao que nós, ocidentais, consideramos a história.
A linha imaginária que tem início no antigo Egito se projeta diretamente sobre a Europa, passando por cima do Islã. É como se a população local estivesse ali por acaso.
Quem "inventou" as pirâmides foram os europeus e são eles que animam a mitologia em torno delas, agora não mais como escritores e soldados, mas como turistas.
A força da resistência muçulmana vem do caráter imobilista que a Revelação tem para eles. Como o Evangelho para certas seitas, o Corão é uma verdade fixa que não admite sequer interpretação, que dirá mudança.
Não é de espantar que o elemento "frio" tenha tanto peso na cultura islâmica. Ela continua enfrentando como pode o assédio crescente da turbulência ocidental.
A diferença é que o Ocidente não avança mais em nome de Cristo, mas pela primeira vez em nome da sua própria anti-história: a que desliga a pessoa da família, da tradição e da fé para torná-la um átomo de consumo.

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