São Paulo, sexta-feira, 20 de janeiro de 1995
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O reino da imoralidade

JANIO DE DE FREITAS

A coerência do presidente Fernando Henrique Cardoso não está sendo reconhecida na repercussão, muito negativa, da sua decisão de vetar o aumento do salário mínimo de R$ 100 e aceitar, transformando-a em lei, a anistia das duas dúzias de políticos que cometeram o crime eleitoral de usar a gráfica do Senado.
Embora à primeira vista possam parecer o contrário, as posições de Fernando Henrique têm origem no mesmo critério e uma complementa a outra.
Ninguém discordará honestamente, creio, de que a anistia em questão é mais um capítulo da imoralidade política e da degradação institucional que prevalecem sobre os discursos e, mais ainda, sobre as aspirações dos cidadãos. Mas nem por isso será absurdo que Fernando Henrique dê a sanção presidencial, que implica a aprovação pessoal de qualquer presidente que se declare ético, ao que os plebeus consideramos a imoralidade da anistia. A outra parte das duas decisões facilita a compreensão do todo coerente.
O salário mínimo de R$ 70, que Fernando Henrique criou como patrono do Plano Real e quer manter como presidente, está na lógica do gênero de política econômica em vigor desde a URV. Os alicerces do Plano Real são a contenção dos salários e a valorização artificial do real em relação ao dólar. Mas o salário mínimo é dos mais baixos do mundo, só comparável ao de países que estão nas últimas ou delas nem saíram. Com R$ 70, ao fim de um mês de trabalho não é possível comprar sequer a cesta básica, este magro embornal de sobrevivência miseranda que custa R$ 100. A R$ 70, uma hora de trabalho é paga com R$ 0,36. Atenção: 36 CENTAVOS.
O salário mínimo brasileiro é uma imoralidade monstruosa. A anistia dos lucenas não tem efeito material além deles. A imoralidade do salário mínimo é o genocídio lento, pela alimentação infra-humana de milhões de crianças, pela relação entre ganho da família e mortalidade infantil, pela redução do tempo de vida adulta.
Vetar a anistia dos políticos seria ato de ruptura com a imoralidade política e a consequente degradação institucional. Mas, a iniciar-se enfim a instauração da moralidade, seria impossível conciliá-la com o salário mínimo. E a imoralidade do salário mínimo real é um artigo de que o presidente e o seu plano não abrem mão. Se o reino continua sendo o da imoralidade, a anistia aos criminosos eleitorais não é mais do que um ato coerente, ditado pelo critério de que a moralidade não pode ser parcial. Ou existe no todo ou não existe. Logo, a imoralidade política e a degradação institucional devem continuar. Fernando Henrique foi coerente –pelos critérios presidenciais e pessoais.

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