São Paulo, sexta-feira, 20 de janeiro de 1995
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Quem não comeu lambreta perdeu

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

É só alguém tocar no país da gente, falar uma bobagem qualquer, algo como o hábito estranho de se comer doce com queijo, e o patriotismo sobe ao peito, o rosto se incendeia. Num dos poucos, senão o único livro estrangeiro sobre comida brasileira, a autora afirma que comemos pizza com farinha de mandioca e que a farinha vem para a mesa em saleiro. É por isso que, quando vamos aos EUA, tantas vezes enchemos a pizza de sal, pensando ser farinha.
Girei sobre as tamancas, queria provas, escrever para a editora, mas deixei para lá. A ignorância deles é o reflexo da nossa. Este ano vou prestar atenção no Brasil.
Recebi uma carta de um inglês, Alan Davidson, que está organizando o "Oxford Companion to Food". Pede socorro para resolver pequenas dúvidas, ou "puzzles", como ele diz. Quer saber se a fruta biribá é importante o bastante para constar do livro, quer saber as diferenças de aparência e textura, da fruta do conde, da condessa, da pinha, da ata, do araticum, da anona, da siricaia, da cherimoia. Rollinias deliciosas? Annonas squamosas?
E eu lá sei? Quem foi criado e mora em São Paulo não conhece fruta no pé, conhece fruta de apalpar no supermercado, quando muito na feira. Manga? Só a Haden, musse dourada e resplendente. Nossos filhos, então, jamais engasgaram com o gosto de terebentina da manga sapatinho e tentaram arrancar dentre os dentes suas milhares de fibras. Nunca viram nem sentiram o cheiro levemente passado das bourbons com as manchas pretas amolecidas, cedendo ao toque dos dedos.
E, se tentamos conhecer as coisas assim, pela rama, não conseguimos. Afinal somos apenas gente comum, que vai à feira, que cozinha, que quer aprender sem precisar entrar numa biblioteca especializada. Experimente perguntar ao feirante se sabe de onde vem a batata que ele vende. Qual o melhor tipo para assar, fritar ou cozinhar? Quais as cerosas, quais as pulverulentas?
Quem conhece nossa frutas silvestres? Só o Silvestre Silva (autor de "Frutas-Brasil-Frutas"). Vamos testar por ordem alfabética. Abiu, araçá, bacuri, biribá, cabeludinha, cagaita, cajá, cambuci, grumixama, guabiroba, ingá, mangaba, murici, pequi, pitomba, umbu?
E peixes? Ganha um prêmio quem souber o nome de dez. De rio ou de mar, tanto faz. Quem já comeu lambreta? Quem não comeu perdeu.
Pelo menos as quitandas e os bolos, deveríamos fazer em casa, para tomar com café ralo, senão pela tradição, pela graça dos nomes. Beijos de freira, caboclos, amanteigados.
O que está acontecendo conosco, com nossas raízes? Isso sem falar da dificuldade em diferenciar o cará do inhame.
Sobrou alguma coisa de pajé na sua cultura? Para que serve chá de mastruço, capim santo, flor de sabugueiro, casca de catuaba, flor de melancia, quebra-pedra, jurema branca?
Meu Deus, somos brasileiros ou uma raça híbrida que não sabe nomear seus comes e seus bebes?
Este ano vou me dedicar à comida mineira, pelo menos, e Nova York que se dane. Vou aprender a fazer ora pro nobis com cebola batidinha, salsa e pimenta cumari. Vou descolar um pé de jurubeba e fazer conserva para comer com arroz, feijão e bife. Vou me dedicar a angu sem sal e frango ensopado com quiabo "al dente". Comprar maxixe na feira, cortar bem fino e temperar para salada. E ficar em paz com minha consciência alimentar, ó pátria amada.

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