São Paulo, sábado, 21 de janeiro de 1995
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A invasão das mulheres

JOSUÉ MACHADO

Houve tempo em que a maioria das mulheres era encarada como enfeite, objeto de prazer e matriz. Isso acabou faz tempo. Talvez não de todo, convém admitir, e é bom que um ou outro desses aspectos se mantenha para dar cor e sentido à vida. O fato é que elas passaram a ter acesso a alguns cargos que não reivindicavam ou a que não as julgavam capazes. Coisa feia. Passaram então a conquistá-los com competência e algum encanto, privilégio de quem pode. Daí certa resistência de autoridades, autores e gramáticos a flexionar os nomes dos cargos exercidos por elas. Eram tempos de dúvidas e indefinições. Também acabou.
Se as mulheres já eram princesas, rainhas, imperatrizes, ainda que por direito divino, por que não senadoras, deputadas, vereadoras, prefeitas, ministras, embaixadoras, consulesas, juízas, delegadas e o que mais ocorrer? Acabaram-se as dúvidas e resistências. Como escreveu sem intenção de fazer humor um grande filósofo a propósito de outro assunto, essa agora "é a opinião da flor dos gramáticos lusitanos e brasileiros."
A flor se despetala, no entanto, em relação a "presidente". A maioria considera correto "a presidente" por causa da uniformidade dos adjetivos terminados em "ente", do latim "ns", como amante, ausente, demente, estudante, ouvinte, prudente, vidente, e outras. Por isso Machado de Assis (1839-1908) escreveu em "Quincas Borba": "À mesa fê-lo sentar ao pé de si, tendo do outro lado a presidente da comissão." Mas Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875) escreveu em "Sabichonas": "À nossa presidenta, e às minhas sócias, peço se dignem perdoar-me o intempestivo excesso."
Apesar da boa razão etimológica é provável que pela devastadora pressão feminista "presidenta" venha a se firmar, porque muitos especialistas já a consideram a forma preferível. Imagine-se dona Ruth Cardoso na Presidência da República. Se não fosse chamada de "presidenta", usaria a palmatória. Em relação aos outros cargos, no entanto, a forma feminina é aceita sem discussões.
Não foi por resistência, portanto, que esta Folha incorreu no que a leitora Elenir Eller Cordeiro, de Rubiataba (GO), apontou como incoerência: em reportagem sobre o alegre namoro de Itamar nos EUA, a repórter Silvana Quaglio escreveu por engano "cônsul brasileira" (engano do computador, claro). E no comentário "Los dos amigos", Clóvis Rossi escreveu sem engano "consulesa brasileira".
Sobre o sentido de embaixatriz e embaixadora já houve alguma discussão entre os sábios. Caldas Aulete e outros dicionários registram "embaixatriz" como a mulher que desempenha funções iguais ou semelhantes às de embaixador e também mulher de embaixador. E embaixador como mulher encarregada de missão particular e forma feminina popular de embaixador. O Aurélio e o Melhoramentos registram as mesmas acepções, mas consideram, como a maioria dos especialistas modernos, que embaixadora é representante diplomática e que embaixatriz se tornou a mulher do embaixador, felizes ambos desde que ele não esteja acreditado, como dizem, na Tchetchênia ou na antiga Bósnia-Herzegovina, sem acento no "go", por favor, que essa palavra é paroxitona. Será que a namorada do dr. Itamar Franco se tornará embaixatriz em Portugal? E a saudade de Juiz de Fora e da patota? E o Durante? E o Hargreaves? E o Zé de Astro, grande figura?
Já que estamos na diplomacia, é bom lembrar que embaixador (do italiano "ambasciatore") é a categoria mais alta de representante diplomático de um Estado junto de outro Estado ou de um organismo internacional. E também o título de ministro de primeira classe. Quanto a cônsul (do latim "consul, consulis", antigo magistrado romano), é o funcionário diplomático encarregado de proteger os cidadãos de uma nação em país estrangeiro.
Embora os dicionários nem sempre registrem a forma feminina, é óbvio, convém repetir, que ela corresponde às mesmas funções exercidas por mulheres. Porque elas já substituem bem os homens em tudo, não raro com vantagem. Se não em tudo, em quase tudo. Às vezes, lamentavelmente, em concorrência desleal até nas coisas do amor. Isso não fica bem.
PS – Na verdade toda essa conversa é meio vã, porque a lei federal nº 2.749, de 2/4/56, e a lei estadual nº 27.407, de 8/2/57, determinam que se dê forma feminina às palavras designativas de cargos ocupados por mulheres, embora já se saiba que há leis que pegam e leis que não pegam. É só olhar ao redor.

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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