São Paulo, terça-feira, 24 de janeiro de 1995
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Banda associou a transgressão ao pop

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

Um dos filmes mais tediosos da história se chama "Sympathy for the Devil" (ou "One Plus One", título europeu) e tem os Rolling Stones como protagonistas. Foi realizado em 1968 pelo diretor francês Jean-Luc Godard. Acaba de ser lançado em vídeo nos EUA no calor do revival provocado pela turnê "Voodoo Lounge".
O filme realiza um prodígio de equívocos. Mesmo assim, ajuda "ad absurdum" a traçar o retrato estético dos Stones. Tudo o que Godard acha que a banda representa é o contrário.
Godard alinha os Stones aos movimentos revolucionários de esquerda dos anos 60. Ao longo de duas horas, mostra o grupo num estúdio, a gravar e regravar aplicadamente a música "Sympathy for the Devil". Ela será lançada naquele ano como faixa inicial do LP "Beggar's Banquet" e se tornará um dos clássicos da banda.
Às imagens de estúdio Godard justapõe cenas num cemitério de automóveis. Ali, os Panteras Negras (grupo terrorista negro) torturam loiras, brincam com armas e lêem textos de Mao e Marx.
Corte para o estúdio. Brian Jones, parado, passeia os dedos pelo violão. Keith Richards bebe e fuma. Mick Jagger dá ordens, faz, canta e acontece. Tudo é muito demorado, como se dá normalmente numa gravação de disco. A ausência de cortes chateia.
A longa letra da canção, escrita por Jagger, conta a saga de Satanás na história do homem. O diretor quer provar que ela tem um impulso revolucionário igual ao "Manifesto Comunista". Linha contínua: Marx, Mao, Mick.
Enquadrar politicamente a estética dos Stones parece delírio. Ao contrário, se for para defini-los, eles merecem as tarjas de reformistas, antipolíticos, até mesmo de conservadores. Nunca engajados, nunquinha desanimados. Por que despertaram em Godard uma leitura tão divergente?
Porque alguns dos rocks da banda, como "Sympathy for the Devil", contêm ambigüidades típicas das obras de arte. A letra se inspirou no romance "O Mestre e Margarida", do russo Mikhail Bulgakov, que identifica o diabo a Stalin. Jagger copiou a batucada de um toque atabaques que ouviu na Bahia. Ali tudo cabe, pois não existem mensagens fixas. O pretenso pacto de Jagger com o demônio não passa de uma metáfora do pacto real com a grande arte e o espírito absoluto do mercado. Godard não quis perceber.
Os Stones não são e nunca foram rebeldes. Praticam menos rebeldia do que um hedonismo de alta definição. Tiveram ocasião de vender idéias e comportamentos que foram adotados pela maioria da humanidade urbana. Onde se lê "Rolling Stones" entenda-se a dupla Jagger e Richards. Os dois nunca deixaram que outros músicos se sobressaíssem. Estes fazem papel de fantoches. Atuam como personagens da divina (ou satânica?) comédia da dupla.
Seja como for, a arte de Jagger e Richards fundamentou um modelo de comportamento eficaz para uma sociedade planetária, sem crenças políticas e religiosas definidas a não ser a sede insaciável de prazer e consumo.
A dupla fez da transgressão uma moda e um produto acabado. Os "bad boys" do rock'n'roll se tornaram também gênios do marketing. Tudo porque descobriram que a chamada má conduta possuía alto valor de troca. Derrotaram o bom-mocismo no rock.
Muito além disso, tiveram papel essencial na fundação da cultura pop. Dialogaram com os principais engenheiros da arte contemporânea –como o artista plástico Andy Warhol e os cineastas Godard e Herzog– e participaram do nascimento da tendência hippie e, no Brasil, do tropicalismo.
Perfilada com os principais movimentos artísticos, a banda ajudou o rock e o rhythm'n'blues (r&b) saírem do gueto para se converterem na música ambiente da era do consumo, da globalização e da rebeldia sexual.
Sua maior contribuição foi elevar o gênero ao registro culto. Basta ler os versos elípticos e carregados de referências da maior parte das canções de Jagger e Richards para notar o quanto eles se afastam do coloquialismo primário da primeira geração do rock. O "riff" de guitarra (refrão instrumental que se repete num rock) de Richards em "(I Can Get No) Satisfaction" representa uma síntese crítica de toda a história do r&b. Deveria haver a disciplina Rolling Stones nas universidades.
Eles constituem uma espécie de eixo do rock, de referência básica em torno da qual os movimentos acontecem, em confronto ou em convergência com o estilo que criaram. Surtos sucessivos de estilos no pop afetaram pouco o prestígio do grupo.
Os punks tentaram usá-lo como espantalhos nos anos 70. Consideravam-no a antítese da espontaneidade, exemplo do cinismo forjado pela indústria do pop. Ainda assim, se impregnaram pelo estilo cru da banda.
Musicalmente, ela nunca foi incendiária e muito menos experimental. Não repetiu jamais as montagens psicodélicas e os achados do disco "Their Satanic Majesties Request" (1967). Considerou o trabalho um fracasso. Voltou ao rock básico, quase fundamentalista, sempre mantendo um alto padrão de excelência.
Ao lado dos rivais Beatles, os Stones exemplificam a elaboração que começa no cover e resulta em estilo. Tomaram o som negro norte-americano como elemento imaginário e não fruto de vínculo cultural direto. São filhos do rock inglês, que surgiu do cover, da leitura devota de uma tradição não vivida, só imaginada. O material dos primeiros discos dos Stones compreendem versões de Muddy Waters, Chuck Berry e outros astros do blues e do r&b.
O "branqueamento" do r&b que realizam tem uma contraparte. Quando desembarcam pela primeira vez nos EUA, devolvem em forma de sucesso a tradição musical do país. Só depois dessa experiência Jagger e Richards se sentem à vontade para compor.
Atingem a maturidade artística nos discos "Sticky Fingers" (1971) e "Exile on Main Street" (1972). Consolidam neles um dialeto universal do rock, até hoje seguido e rivalizado.
O declínio avulta nos anos 80. Produzem muito pouco e assumem o avanço da idade. A partir de então, têm repetido as fórmulas que forjaram anteriormente. A instituição se alimenta com talento do próprio material.
A febre atual deflagrada por "Voodoo Lounge" vem revestida de um aspecto diferente das anteriores. Os Stones acabam de virar um produto para quatro gerações de consumidores.
Não são mais símbolos de uma faixa etária, e sim de todas. Atingem o consenso das gerações. O fato vai de encontro ao impulso básico do rock: o de alimentar a rebeldia juvenil. Hoje esta reencarna nos Stones quase como incontinência senil.
Nem tão Godard, nem tanto punk. Se os Stones assinaram momentos transgressivos no início do "flower power", foram eles também os responsáveis pelas exéquias do sonho hippie na Altamont Speedway. Sepultaram o rock no disco "Emotional Rescue", mas nos anos 90 se encarregam de exumar e manter vivo o espírito do gênero.
Os Rolling Stones se equilibram no gume que divide a utopia do cinismo. Continuam balançando, ora para um lado, ora para outro, ao ritmo dos quadris de Mick Jagger. Sem dúvida, é o museu mais agitado do mundo.

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