São Paulo, terça-feira, 24 de janeiro de 1995
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Mulheres estão parindo um novo cinema

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O cinema no Brasil era um fenômeno masculino. Morreu. O cinema novo era composto por nós, machistas loucos, covers de guevaras que se achavam com o fuzil da câmera na mão e as idéias na cabeça, o pau na mão e vagos leninismos na cabeça. Morremos todos. Mesmo os que acham que não morreram vagam como "incidentes de antares" pelas ruas.
O cinema macho vive em melancolia, pois se recusa a fazer o luto por si mesmo. Enquanto não reconhecermos que houve morte de um projeto, não podemos começar outro. Ainda corre entre os machos corporativistas a antiga idéia de que nós (oh, sérios guevarinhas!) fomos vítimas de um injustiça da história.
Não lhes ocorre que estivessem errados. Mas isto é assunto para outro artigo que farei: "Cinema e Masoquismo"; não importa agora.
Importa é que as mulheres vieram. Como enfermeiras, vieram ao campo de batalha ver os despojos e com os restos começaram a fazer novos filmes, livres como mães que perderam os filhos. Como viúvas alegres, começaram a filmar sem os maridos castradores e obsessivos burros.
Estranha coisa: as mulheres estão parindo um novo cinema no Brasil. Ana Magalhães fez "Erotique", Suzana Moraes fez "Mil e Uma", Monique Gardenberg filma "Jenipapo", Norma Bengell começa o "Guarani", Sandra Werneck, Ana Carolina e Tizuka preparam produções e Carla Camuratti fez o "Carlota Joaquina", e nele está vivo como uma flor resistente o fundo desejo do cinema no Brasil.
O filme é ótimo e enche salas no Rio. Alguns parentescos do filme: a chanchada da Atlântida, os bons momentos de Peter Greenaway, "Xica da Silva" de Diegues, teatro rebolado da Praça Tiradentes, teatro paródico dos anos 70, "Macunaima", "O Rei da Vela", escolas de samba, marquesas da Sapucaí, tudo mexido num caldo anárquico e humorístico.
O público se encanta com o óbvio retrato do nosso passado sem-vergonha, nós que começamos como uma piada burocrática de Portugal e que até hoje assistimos à ópera bufa dos congressistas canalhas e chantagistas.
Estes são os parentescos artísticos do filme. Já as heranças de produção de "Carlota Joaquina" são terrivelmente parecidas com os pavorosos esforços que fazíamos nos anos 60 para conseguir filmar (quando terminei meu primeiro longa-metragem, "A Opinião Pública", voltei para casa de ônibus, às cinco da manhã, equilibrando vinte latas do filme).
Toda uma geração de masoquistas nos orgulhávamos do pioneirismo sinistro que sofríamos. Não tínhamos nada. E chegamos a produzir cem filmes anuais. Hoje não temos nada, de novo. E Carla faz "Carlota Joaquina".
Como um pioneiro do passado, ela passou centenas de horas em salas de espera, descolando patrocínios, pesquisou história, escreveu o roteiro, dirigiu a produção, fez a mise-en-scène e, agora, dado o deserto comercial, distribui sozinha o filme no país todo. E o filme está batendo os usuais abacaxis americanos. Dá mais público que Máskaras, Vampiros e Frankensteins.
Isto acontece porque há uma fome de ver um outro Brasil mais torto, para além do realismo linear da TV.
Há uma fome de cinema que fica clara quando surge um bom produto como "Carlota Joaquina". E esta fome de cinema é uma fome de forma, uma fome de ver com outros olhos. Querendo pertencer, o cinema ficou mimético de Hollywood e da Globo, ou então ficou torturadamente suicida, se imolando contra o sistema.
Em exemplos como o de "Carlota Joaquina", vemos que já é tempo de um cinema experimental e popular, inovador e compreensível. Talvez o vazio cinematográfico dos últimos anos tenha nos libertado da tirania de um "repertório" obrigatório de antes.
O estímulo de Carla Camuratti foi o nada. O absurdo político brasileiro recente superou qualquer ficção. Collor reformou nossa dramaturgia. O descompromisso de pessoas possuídas apenas do absoluto desejo de filmar (como Carla) liberta-as das velhas convenções narrativas.
"Carlota" e alguns outros filmes, como o genial "Louco por Cinema", de André Luis Oliveira, e alguns curtas (vem aí uma obra-prima: "Útero" de Cristiano Metri), não são politicamente corretos, nem poeticamente corretos.
O cinema no Brasil, mesmo morto, (oh, sublime loucura!) ainda se divide numa guerra entre a forma petista-denunciativa de uma realidade injusta e a obrigação neoparnasiana de uma "liberdade" explodida. Duas academias se xingam no nada: academia careta e academia muito louca.
Mas a inexperiência dos novos e a falência da produção estão gerando uma nova liberdade, para longe do mundo correto dos "filhos de Getúlio", que ainda se julgam um essencial pelotão crítico, um "brancaleone" de revolucionários oficiais, que merecem receber verbas para seu inconformismo, assim como a saúde pública distribui seringas descartáveis em Amsterdã.
A liberdade prazeirosa e desgrilada de "Carlota Joaquina" –feita por uma equipe alegre que criou figurinos fantásticos de bom e mau gosto (Ladeu Burgos, Emilia Duncan) e uma fotografia tropicolor de Breno Silveira– deve ser um exemplo para criadores. É lindo ver neste filme até mesmo uma formação imperfeita de recém-chegada de lentes e sem "bom senso" gramatical.
Ótimo. Isso dá uma agudeza que permite romper com as noções aceitas da história oficial brasileira. A falta de dinheiro obriga a soluções de elipses que também destroem uma perspectiva clássica do filme histórico óbvio.
Mas o heroísmo de Carla, seu lindo rosto transido de angústia em ante-salas, sua energia flamante em halls de bancos, sua paciência de fanática não podem ser motivo para aplacar burocratas insensíveis e masoquistas de plantão: "Oh... só o heroísmo gera a arte, o artista só é grande se sofrer!" Isso, jamais.
O filme usa o precário como invenção sim, mas isso não pode levar à celebração da miséria como caldo "natural" da arte. É um absurdo a falta de condições em que este talento trabalhou. O cinema é a verdadeira paixão nacional. O Executivo que inaugure novas formas de produção que nos protejam até dos vícios da velha classe corporativista. As mulheres estão mostrando os caminhos. O presidente devia ver este filme.

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