São Paulo, quinta-feira, 26 de janeiro de 1995
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Updike presta seu tributo a Henry James

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

John Updike gosta de se dizer pós-moderno. Ao contrário dos outros, diz isso brincando, com auto-ironia. Mas, como prova seu romance "Memórias em Branco", lançado ontem pela Companhia das Letras, é justamente humor o que falta à sua literatura, como falta ao pós-modernismo.
O romance, originalmente chamado "Memories of the Ford Administration", é chato, ainda que muito bem escrito –e um livro de Updike bem escrito, olhe, mede-se com poucos no mundo.
Tanto virtuosismo, tanta desenvoltura em manejar a língua inglesa, e onde o defeito? "Memórias em Branco" tem sido comparado à tetralogia "Coelho" que celebrizou Updike. Pois bem. Por que esses cinco livros parecem não correr, parecem se arrastar?
O caso de "Memórias em Branco" é mais fácil de explicar, mesmo porque –exceto o fato de ser lento– não tem muito em comum com a tetralogia, temática e tecnicamente. Nesse livro de 1992 (anterior a "Brazil"), Updike presta tributo –e prestar tributo é requisito do pós-moderno– a dois estilos literários. Eis a chave.
Um deles é o realismo psicológico de Henry James –de quem a Ediouro acaba de republicar "Os Europeus" (leia texto ao lado)– e sua discípula, Edith Wharton.
O estilo de "Memórias em Branco" é pictórico; examina cada canto da sala, cada objeto do "décor" requintado, cada prega dos vestidos, com o capricho de um pincel manipulado por John Singer Sargent (1856-1925), grande pintor americano que retratou, entre outros, James.
O narrador de Updike é um acadêmico, Alfred Clayton, e o romance é um texto de Clayton com "recordações e impressões" do governo Ford (1974-1977) para uma revista, "Retrospectiva". Trata-se de sátira clara de Updike à idéia pós-estruturalista de que ficção e história são o mesmo.
O governo Ford, aos poucos, vai se mostrando o período em que o mundo perdeu a idéia de domesticidade, em que estar em casa deixou de ser estar isolado das vulgaridades e violências da rua.
Clayton é um estudioso de outra época, a do governo de John Buchanan (1857-1861), e a contrapõe aos anos 70 em seu artigo. Dessa contraposição, muitas vezes superposição, o livro se alimenta.
Eis então o outro tributo de Updike: ao russo Vladimir Nabokov (1899-1977), autor de "Lolita" e "Fogo Pálido" –romance, este, cujo protagonista é um crítico literário e o assunto, um poema.
"Memórias em Branco", no entanto, não pretende discussões estéticas. Seu assunto é a história dos EUA, sua indefinição e fracasso (ou assim Updike sugere) como projeto de civilização.
Daí o confronto: de um lado, a onipresença do tema sexo, a massificação urbana, o exibicionismo da era Ford; de outro, a inocência de hábitos, a angústia resignada da elite, a dívida com a cultura européia, do governo Buchanan.
O uso dos dois planos poderia ser estimulante, mas acaba sendo um problema. (Assim como ocorre com a mistura de gêneros –narrativa medieval e romance naturalista– em "Brazil".) Muito do que Updike tinha a dizer fica apenas como referência, e muito do que diz não precisava ser dito.
Em vez de explorar a psicologia dos personagens dentro do quadro temático –o mesmo de James, que é o conflito Europa-América–, Updike se perde na superfície das cenas de sexo, se basta nas alusões (a Henry Adams, a Hawthorne, à guerra civil) e nos cansa.
Para escrever com a minúcia descritiva de James, é necessária alta compressão, parcimônia. Updike se refestela nos closes e focos de sua câmera detalhista; e com a trucagem metalinguística distancia ainda mais o leitor da narrativa.
Isso tudo não seria problema se o estilo redimisse a trama, mas falta o que o ídolo maior de Updike, Marcel Proust (1871-1922), chamava de "agente dinâmico": o humor. E humor no sentido mais amplo da palavra, o humor da expressão "humor aquoso", líquido orgânico do olho. Updike, ainda que se esmere na ironia, leva a América excessivamente a sério.
Não tem a malícia de Nabokov. Não produz a ambivalência de James (ambivalência é humor, terra-de-ninguém moral) em mais de 300 páginas. Decupa tudo e não revela o latente. Escreve, em suma, como um "wasp" age, um anglo-saxão protestante que vê responsabilidade em todo ato, culpa em toda ousadia.
Por isso Updike, grande homem de letras, é mestre de peças curtas (contos, críticas, novelas) –formatos que impedem o discursismo que ralenta seus romances.

Livro: Memórias em Branco
Autor: John Updike
Tradutor: Paulo Henriques Britto
Páginas: 339
Quanto: R$ 23

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