São Paulo, quinta-feira, 26 de janeiro de 1995
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Anistia em causa própria

JOSÉ ROBERTO BATOCHIO

Sem dúvida que o artigo 48, inciso VIII, da Constituição da República Federativa do Brasil atribui ao Congresso Nacional competência para dispor sobre a concessão de anistia.
Tal realidade se acha ao largo de qualquer controvérsia jurídica, constituindo truísmo repicá-la para justificar o benefício que o Poder Legislativo vem de outorgar ao senador Humberto Lucena e demais congressistas que utilizaram a gráfica do Senado em benefício pessoal.
O que cabe considerar, isto sim, é se, a pretexto de exercer esse poder, o Congresso não incorreu em desvios, não resvalou para inconstitucionalidades, reservado o juízo de valoração ética de tal decisão às demais instituições e a cada um dos cidadãos brasileiros.
A própria Constituição não define o que seja anistia e tampouco o faz o Código Penal (que a inclui entre as causas de extinção de punibilidade), ficando a sua conceituação atribuída à doutrina, atenta aos usos.
Os tratadistas ligam a idéia de anistia à de "esquecimento", de "perdão" (lato senso), ditados sempre por razões de natureza política/sociais, eis que, em caráter excepcional, deixa de considerar crime fatos criminosos, praticados em determinado espaço de tempo. (Trata-se de revogação parcial da lei penal e por isso que "l'amnistie ne peut être accordée que par un lol", como dispõe a Constituição Francesa de 1946.)
Ordinariamente, visa a delitos de natureza política, pois este é o fundo das razões que a inspiram.
Se é certo que nada impede que seja estendida a delitos de outra natureza, soa estranho, muito estranho, que a anistia seja aplicada em causa própria e por interesse próprio, tendo em vista uma situação especial de determinada pessoa.
Em tal hipótese, fugiria do seu objetivo e do seu uso, afrontando o princípio da moralidade, que preside a administração pública (artigo 37 da Constituição Federal).
Bem por isso diz o professor Celso Antônio Bandeira de Mello que o Congresso Nacional não pode, sem desvio de poder, conceder anistia a si próprio ou a membro seu.
Estranho seria, também, que a anistia se proclamasse em favor de pessoa ou pessoas determinadas. Mesmo quando se tem em vista um fato em particular (por exemplo, a revolta de Jacareacanga), a anistia deve manter o caráter abstrato e geral de toda lei: abrange uma determinada categoria de delitos, cometidos num determinado lapso de tempo. O privilégio (a lei feita para um só) é odioso e contrário ao princípio republicano.
Não só por essas razões está o Congresso impossibilitado de votar anistia em favor de membro seu: caso o faça, está ampliando as imunidades parlamentares, inscritas no artigo 53 da Constituição Federal.
Os deputados e senadores não podem ser processados, em qualquer hipótese, por suas opiniões, palavras e votos (imunidade material) e também não podem ser processados criminalmente, sem prévia licença da Câmara ou do Senado (imunidade formal).
Assim como o artigo 48, inciso VIII, que permite ao Congresso conceder anistia, o artigo 53 faz parte da Constituição: não se pode aplicar um deles com prejuízo do outro. Os congressistas gozam das imunidades proclamadas pela Constituição e de nenhuma outra.
Por serem regras excepcionais, as regras em matéria de imunidade são de interpretação estrita, de modo que o ato do Congresso que amplie imunidade está ofendendo, diretamente, o artigo 53 da Constituição Federal.

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