São Paulo, quinta-feira, 26 de janeiro de 1995
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O Brasil na casa dos espelhos

RICARDO SEITENFUS

"Se você quer livrar-se da verdade, sufoque-a com as palavras." (Goethe, 1749-1832, in "Maximen und Reflexionen")
Acompanhando a polêmica que se desenvolve nas páginas da Folha, entre um agente diplomático e representantes da sociedade civil, encontro-me diante de um tema com o qual me preocupo intensamente.
Meus três filhos são suíços, residem em Genebra, e de lá percebem a pátria de seu pai, por certo prescrutando as razões pelas quais, depois de 15 anos de exílio voluntário, decidi viver e trabalhar no Brasil. Portanto, enfrento este dilema (a imagem do Brasil no exterior) não apenas profissionalmente, como o fazem os diplomatas ou grandes empresários.
Quando estamos no exterior e ouvimos comentários pejorativos sobre o Brasil , nossa reação imediata –natural e humana– é procurar defendê-lo. Trata-se de uma tarefa extremamente ingrata. Mas certamente não são os sentimentos a essência da questão.
Tudo leva a crer que o embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima não detém apenas uma visão particular acerca da política externa brasileira. Há sinais evidentes de sua grande influência na condução dos assuntos do Itamaraty.
Símbolo da diplomacia tradicional, ele construiu uma brilhante carreira. Dos raros diplomatas que, levado à aposentadoria compulsória, foi mantido no cargo, o embaixador dialoga diretamente com o presidente da República.
Dentro da estrutura do Itamaraty, ele seria talvez a pessoa menos indicada para absorver novos tempos de abertura, caso eles existissem. Típico representante do Estado, péssimo representante da sociedade civil, Flecha de Lima segue rigorosamente a cartilha da diplomacia que serviu ao desenvolvimento distorcido do país. Compreendendo a política externa precipuamente como um instrumento comercial, considera a boa imagem, com vistas à confiabilidade para negócios, como uma prioridade absoluta.
Os diplomatas tradicionais, acostumados a conversações sigilosas, rebeldes à publicização de seus atos e à prestação de contas diante de uma opinião pública que pouco os conhece, são percebidos como etéreos seres privilegiados que "vivem longe do Brasil à custa do Brasil", como dizia Oswaldo Aranha, quando embaixador em Washington, em 1937.
Outro caso, o do embaixador Rubens Ricupero, ao definir o Brasil como "irracional", foi exemplo do divórcio que pode ocorrer entre um país e seus representantes, em particular quando atuam junto aos países industrializados. Transformam-se em observadores distantes de uma realidade que repudiam e, ao mesmo tempo, são obrigados a defender.
No entanto, a forte voz da diplomacia tradicional, expressa por Paulo Tarso nesta coluna, tem merecido de Brasília apenas o silêncio, o que vem a contrariar os novos augúrios da "diplomacia presidencial", anunciada, com entusiasmo, pelo chanceler Luiz Felipe Lampreia.
O novo governo, de acordo com as declarações de seus membros, deveria caracterizar-se, além da abertura política no Ministério das Relações Exteriores, pela intervenção do presidente nos assuntos externos. Esta atitude foi objeto do meu artigo (nesta Folha, 20/12), intitulado "O déspota esclarecido".
Pela nova lógica, o Itamaraty deveria conservar um perfil baixo em favor da atuação presidencial. O que está a ocorrer, na prática, é que, enquanto o presidente ocupa-se de outros assuntos, os agentes diplomáticos mais ativos, que parecem deter o poder real, ficam livres para defender as suas idéias –e elas não apresentam nada de novo. Ou seria esta, a de Flecha de Lima, a percepção do presidente?
De outra parte, o ministro Lampreia, questionado a respeito do conflito da Tchetchênia, declarou que não possuía informações suficientes para tomar uma posição. Ora, o seu secretário-geral foi até pouco tempo representante do Brasil em Moscou. Concordo que se trata de um caso pouco charmoso e materialmente distante; é, todavia, atroz e significativo. O Itaramaty estaria sendo apenas inoperante ou aguardaria um pronunciamento do presidente para manifestar-se?
Retomando a polêmica, não se pode escolher do Brasil somente uma de suas faces, a de potência emergente entre as dez maiores economias do mundo. É incompreensível a ingênua visão de que nossos representantes são o único elo entre a realidade brasileira e o mundo. Os meios de comunicação da atualidade jogam por terra todas as pretensões de esconder o que de fato ocorre no Brasil.
Não se trata de dar carta branca a organismos internacionais os quais, por vezes, nem sequer conhecemos. Mas certamente não é sobre eles que devemos discutir. Ocorre que essa atitude reativa, mascarando as evidências e minimizando nossas terríveis mazelas, além de inverossímil, não trará bons frutos e mudança alguma.
É chegada a hora de ver novas prioridades para nossa diplomacia, como a democratização da política externa e o seu engajamento na busca de um desenvolvimento equânime para o país.
A cooperação internacional deve ser buscada não através de subterfúgios, mas mostrando instrumentos concretos e pagando um elevado preço político para utilizá-los, mudando a realidade brasileira.
Eu os procuro em Fernando Henrique Cardoso e, com tristeza, não os encontro. No caso da política externa, não há uma linha de ação com princípios próprios, previsibilidade e transparência.
Parece mesmo que velhas chancelarias, cuja solidez na estrutura do Estado é inquestionável, encontram-se perplexas diante da nova realidade internacional e das exigências da democracia. Não tenho, ainda, boas novas para os meus filhos.

RICARDO ANTÔNIO SILVA SEITENFUS, 46, doutor em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra, é coordenador do curso de mestrado em integração latino-americana da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e autor dos livros "Para uma Nova Política Externa Brasileira" e "Haiti, a Soberania dos Ditadores".

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