São Paulo, sexta-feira, 27 de janeiro de 1995
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Tomo da cuia de esmoler

JORGE AMADO

"A Irmandade da Boa Morte está acima das ideologias, idiossincrasias, raças, língua e poderio econômico." (De um documento da Irmandade de Julho de 1990)

Tomo a cuia de esmoler das mãos de Celina –Celina Maria Salla–, a infatigável, a heróica combatente. De cuia em punho, irei em frente, pedinte obstinado: a sede nova da Irmandade deve ficar pronta a 14 de agosto, dia em que a festa terá início, a procissão deste ano de 1995 deverá sair das casas reconstruídas. Para que assim seja recebo a cuia de esmoler, parto em missão.
Estamos reunidos em torno à mesa da sala pequena e pobre, sede atual da Irmandade, situada ao lado da igreja da Ajuda. As irmãzinhas me contam as alegrias das doações –a casa maior, oferecida pelo americano rico, a menor, doada por um ex-prefeito de Cachoeira–, relatam as peripécias da luta para obter a reconstrução das duas prendas, fachadas belas, mas ambas em ruínas. Assumo o compromisso, a cuia de esmoler: a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte terá sua sede digna e espaçosa onde as meninas de 90 anos poderão rezar, dançar e cantar.
A conversa chegou ao fim, pusemo-nos todos de pé, as velhinhas cantaram para a Virgem Maria: vestida de branco, ela apareceu, trazendo no cinto as cores do céu. Ave, Ave, Ave Maria. Cantaram para a Virgem Maria, depois dançaram para Xangô: a cultura brasileira.
Por assim ser, começarei por me dirigir ao ministro da Cultura –militante do PT, professor da USP, também ele homem de compromisso–, pois não há no Brasil mendigo mais miserável no rol das nossas misérias do que a cultura. Sei que o ministério tem verba curta e que o cinema, o teatro, o balé, a música, a literatura, as artes plásticas e tantas outras expressões, nobres e eruditas, necessitam –e como necessitam!– de ajuda oficial. Mas também e, quem sabe, sobretudo, as raízes, os fundamentos da cultura do povo brasileiro reclamam e merecem atenção e apoio dos homens do governo, do ministro responsável.
São mulheres negras, velhas –Arlinda Anatária do Nascimento tem 104 anos de idade–, paupérrimas, reunidas na cidade de Cachoeira há cerca de 200 anos: Libânia, avó de Canô Veloso, bisavó dos Doces Bárbaros, foi das primeiras a ingressar na Confraria. Fundada pelos escravos, a devoção da Virgem da Boa Morte nasceu (em 1820, segundo Odorico Tavares) nas mesmas senzalas do recôncavo baiano, onde nasceu a capoeira de Angola, onde nasceram as casas de santo, os candomblés da provedora Anália de Iansã, da tesoureira Deleci de Ogun, de Estelita de Oxalá, a juíza perpétua. Gente boa, vivida e sofrida, gente alegre e festeira, credoras de nosso respeito e de nosso amor. Velhas senhoras, trabalham dia e noite, ganham vinténs contados: elas são o alicerce africano da cultura brasileira, de nossa nação mestiça, quem sabe a pedra fundamental –elas são a causa; as criações literárias e artísticas, livros, telas de cinema, palcos de teatro, vídeos de televisão, as altas criações, são a consequência. É preciso fazer alguma coisa por essas meninas, senhor ministro, dar à Irmandade sede condigna.
É preciso recuperar-lhes as casas, para que tenham onde preparar a festa como ela deve ser preparada. Elas são rainhas e no entanto não pedem um palácio, apenas uma sede onde abrigar a Virgem da Boa Morte, seus paramentos e suas alfaias. O americano rico soube entender, doou uma casa, o político local fez a sua parte, doou outra ao lado. A festa de agosto, grandiosa, requer sede à altura dos ritos e das obrigações. A missa com que a cerimônia se inicia é celebrada na igreja, tudo bem. Mas a sentinela, o velório da Virgem Morta, como limitá-lo ao reduzido de uma saleta? Nela não cabem a contrição numerosa das irmãs, os cânticos de louvação, a mesa farta, fartíssima, de comidas baianas de preceito e de quizila, a culinária ritual dos encantados. E se a procissão do enterro tem o chão das ruas de Cachoeira para seu percurso de lamento e choro, a festa da ressurreição, a festa maior, a da alegria desatada, a do júbilo, a de Nossa Senhora da Glória, feita de cantiga e de samba –samba-de-roda, cantos gêges e nagôs– exige uma sede onde se possa de fato e de direito celebrar a vitória da vida sobre a morte.
É preciso recuperar as casas e erguer a sede. Passarei a cuia de ilustre a ilustre, de poderoso a poderoso, de rico a rico. Não terei vergonha de solicitar o óbolo, a esmola –a esmola, ai!– até termos juntado a quantia necessária –tão pequena para os que podem e devem, tão imensa para as velhinhas da Irmandade. Desavergonhado, pedirei aos que são meus amigos e àqueles que mal conheço.
Começo por bater à porta de um velho e querido amigo, Walter Moreira Salles. Estão comigo seus filhos Waltinho, João e Pedro, três valores de nossa cultura. Melhor nome para encabeçar a lista de doadores não poderia haver.
Em São Paulo vivem e trabalham os irmãos Ermírio de Moraes, donos da fortuna do mundo. Dirijo-me a Antonio, participamos juntos de projeto para uma Constituição democrática, e lhe pergunto: "Onde estás, Antonio Ermírio, em que mundo, em que estrela tu te escondes, que não ouves as vozes d'África de Castro Alves?" As meninas da Boa Morte e Castro Alves, realidades fundamentais de nossa cultura, mais uma vez a causa e a consequência.
Demorei um dia inteiro visitando as maravilhas do Bradesco. Os beneméritos banqueiros construíram a Cidade de Deus, por que se recusariam a levantar a casa da Virgem da Boa Morte?
Por falar em banqueiro, sei que Ângelo Calmon de Sá conhece e preza a Irmandade. Mesmo sendo seu Banco Econômico o sustentáculo das obras de Irmã Dulce e constante apoio às entidades culturais da Bahia, há de estar presente nos tijolos e nas tábuas da nova sede.
Muitos outros existem, impossível citá-los todos. Mas aos exemplos aqui referidos, quero juntar a Odebrecht, a boa empreiteira da Bahia, que os anões querem ver destruída, exatamente por ser aquela empresa que dedica tempo e dinheiro à cultura. Suas edições referentes à história e à arte brasileiras, mais do que belas e importantes, são exemplares. Exemplo que deveria ser mais seguido, e pouco o é. Com certeza, Celina, escreveremos os nomes de Norberto e Emílio Odebrecht, de Renato Martins na lista dos benfeitores da Boa Morte.
Comecei passando a cuia a um amigo, termino estendendo-a a outro: a Antônio Carlos de Almeida Braga. Tão em evidência por tantos títulos, seu título maior, seu privilégio é ser casado com minha sobrinha Luísa Konder: Braguinha e Luísa não falharão. Aliás, Celina, ninguém falhará. Quem se atreveria a negar à Senhora da Boa Morte?
Depois dos ricos, irei aos poderosos, àqueles de quem os ricos dependem. Quando Anália e eu rogamos a atenção de Antônio Carlos Magalhães para a restauração das casas, o mandatário que restaurou o Pelourinho vivia os últimos dias de seu extraordinário governo. O problema o comoveu, mas já não lhe sobrava tempo para resolvê-lo. "Paulo Souto resolverá", nos disse ele, "as obras de restauração de nosso patrimônio não serão interrompidas". Antônio Carlos não é de fazer afirmações vãs. Realmente Paulo Souto propõe-se a dar seguimento à grande obra administrativa do governo anterior: Cachoeira necessita e merece tanto quanto o Pelourinho. A recuperação das casas da Irmandade da Boa Morte pode significar o início da restauração da magnificência da cidade.
O escritor José Sarney, ficcionista de minha predileção, dublê de político capaz, conhece na intimidade a cultura do povo maranhense. Devoto de São José de Ribamar, ogã na Casa de Mina de Jorge Babalaô, em São Luís, romeiro do Círio de Nazaré, em Belém do Pará, tem mais do que nenhum outro homem público brasileiro a obrigação de nos ajudar. Não o fará, porém, por obrigação, e sim pela alegria de ver rezar e cantar as irmãzinhas da Boa Morte.
Roberto Marinho –quem mais poderoso e mais devoto?– há de colocar seu império de comunicação a serviço da boa causa. Imagino um "Globo Repórter", documentário sobre a Irmandade da Boa Morte, terminando com a inauguração da nova sede, que beleza!
Já apelei ao ministro da Cultura, apelarei ao presidente da República: a meu ver sua ajuda à Irmandade da Boa Morte está explícita nos compromissos de seu discurso de posse. Além do mais –recorda-se, Fernando Henrique?– na visita à Igreja do Bonfim, a provedora Anália colocou no pescoço do candidato o colar de Xangô, decisivo para a vitória.
Contaram-me que já existe um projeto de restauração das casas doadas, realizado por Paulo Ormindo, filho ilustre do ilustre Thales de Azevedo. É chegado o tempo de retomá-lo e realizá-lo.
Em nome também de Paulo Ormindo e Thales de Azevedo estendo nossa cuia de esmoler. Em nome deles e de mestre Carybé –ao citá-lo, cito todos os artistas da Bahia; de Myriam Fraga –ao citá-la, cito todos os poetas da Bahia, os grandes, os pequenos e os de cordel; de Dorival Caymmi –ao citá-lo, cito todos os músicos da Bahia; de Jorge Calmon –ao citá-lo, cito todos os jornalistas da Bahia; de Eduardo Portela –ao citá-lo, cito todos os ensaístas da Bahia; de João Ubaldo Ribeiro –ao citá-lo, cito todos os ficcionistas da Bahia; de Maria Bethânia –e ao citá-la, cito todas as deusas da Bahia; em nome de todos os que amam a beleza, a graça e a civilização brasileira, estendo nossa cuia de esmoler, peço ajuda com urgência. Não peço, exijo. Exijo ajuda e urgência na ajuda. A inauguração de nova sede tem data marcada: 14 de agosto de 1995, dia do início dos festejos da Nossa Senhora da Boa Morte. Adenor Gondim fará a fotografia das irmãs e dos benfeitores reunidos em frente às casas restauradas.
Na sala ampla da nova sede, museu de alfaias e paramentos, de imagens, do acervo precioso da Irmandade, as meninas –velhinhas de 90 anos, pobres de marré de si, festeiras sem igual– cantarão para a Virgem: vestida de branco, cercada de luz, no céu aparece a Mãe de Jesus, Ave, Ave, Ave Maria. Depois, a provedora Anália rodará a saia, sairá porta afora, as demais a acompanharão, dançarão para Xangô.
Cantarão para Nossa Senhora, que aqui chegou com Jesus nas caravelas lusitanas, dançarão para os orixás, que vieram na viagem de espanto nos navios negreiros: aqui se misturaram. A Virgem Maria, Iemanjá e Mani, a raiz sagrada dos indígenas, se misturaram e a cada dia se misturam mais –a cultura brasileira, meus ilustres!

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